domingo, fevereiro 25, 2018

Resposta


Sempre me fascinou que aqueles que se julgam homens da revolução se sentissem irmãos.
Falavam uns dos outros com emoção: escorriam como sopa.
Isso não é ódio, meus caros, é gelatina.

Henri Michaux

Há acusações em que o inferno é defendermo-nos delas. As estúpidas mais até do que as fabulosamente injustas, pela vertigem de enjoos que nos causa ter em cada nervo um efeito de déjà vu, o açoite de ficar de quatro, cada palavra desgostada de antemão por se saber, por ora, uma mera faxineira, pondo o avental, luvas, e empurrando o carrinho de limpeza. Consome-nos mais o andar à volta, com o cuidado de não se sujar, e o cuidado de ir atando os cordões aos sentidos entre o efeito de náusea, do que propriamente ir do ponto A ao B, fazer o que tem de ser feito. Começamos? Que remédio. Lendo este texto, não fosse o excesso de álcool que estrafega qualquer essência, podia tomá-lo como perfume, ficar lisonjeado pela longuíssima exposição, um esforço a metro que, por infelicidade, não sai do mesmo passo. Ainda que me desse para viajar à impulsão de ir levando na tromba, há golpes sem gosto nenhum por ritmos nevrálgicos, é um tumba-tumba em que os efeitos sonoros são só barulhos da boca do outro, e, o mais fácil, é sair-se não de maca, mas com uma gabardine de cuspo. O estilo aqui, diz ele, é flatulento, e nisso sou uma espécie de flauta: cada orifício, sua modulação, mas venha por onde vier, o certo é que cheira desgraçadamente. 
Na relação com António Guerreiro, não me é dada a hipótese de uma afinidade com ele, pois se assumida dá logo margem para acusação de seguidismo, e, assim, depreende-se, vale para Pachecos, Cesarinys, raios e coriscos... A não ser que encontre uma atitude sem qualquer tipo de linhagem, neste pano, cai tudo feito nódoa, suponho que nem direito tenho a ser chamado de filho da puta, porque aí seria o filho, como dizia outro desses tão estimáveis que só à distância, a inventar a mãe, e coitada da senhora, que estaria ali no seu croché, atirada de repente para à rua, com as íntimas partes obrigadas a render, tudo devido à minha imperiosa vontade de nascer. Não basta dizer que, com toda a admiração que assumo, há linhas de demarcação evidentes, desde logo a ponderação que nele iria sempre chocar-se caso apanhasse no espelho o destempero que é mais meu, e depois há toda uma constelação de orientações e saberes, competências analíticas que de todo me ultrapassam e obstam a qualquer confusão deste género. 
Ainda assim, se vos servir de Ursa Maior, pois então ide até ao fim do mundo com essa presunção. Ainda que me coubesse chapinhar num tanque servindo de amostra do que pensa e tem exposto o Guerreiro, tinha mais céu por onde me guiar, mais margem de manobra do que tudo o que para aí vai de bóias de sinalização a dançar presas à corda. Mas onde começa a grosseria não é nesse filme em que sou visto sempre às cavalitas de figuras da Academia, nem é nos epítetos untuosos, esses mais à mão, exemplos de um mal sem flores, sem revérbero, e que, infelizmente, até para mim, deixam pouco eco, poucas minas. Sim, porque não ando de punhos erguidos, não atirei o nome debaixo de todos esses autocarros escolares, porque gosto dos meus reflexos a cantar na gaiola dos elogios que viriam nesta direcção tão certamente como vão em todas as outras... Isto, claro, desde que não se fale no fedor da vossa bela Elsinore. E, nisso, este senhor como os outros, têm sempre um limite bastante revelador. É que: cheira tudo muito mal (eles estão até entre os primeiros a dizê-lo), mas isto contando que a mirífica montanha seja uma forma de dizer longe. Então não me custa levar com o “jornaleiro” (embora não perceba bem em que é que isso me distingue deste tão distinto blogueiro), se calhar é só porque o que escrevo não se lhe mete feito ar puro nas narinas, uma brisa para passar pelos neurónios e que os fizesse tilintar como a um espanta-espíritos. Com o desdém de muitos, vou podendo cada vez melhor. E até, por vezes, entrego com gosto os feijões a que jogamos. E se não deixo de me rever nesse tipo bera que pintam, se já me vi cruel, até sacana, como outros (normalmente mortos) têm direito também a ser, se não me poupo tanto como exige a saúde ao ridículo, e se tive até, não digo balas marcadas, como o Assis, mas esperas, coisas de grupo-gangue com ganas de me fazer a folha, nunca telefonei à última hora a desistir, e ainda hei-de fazer o bastante para vos sorrir com menos dentes brancos à mostra, agora, há uma coisa que não me tiram: crítico sou, empenhadamente e até mais do que a conta. Mas daí a cacique... Ó sôtor, as suas sensibilidades filosóficas não chegam para perceber que o ofício de antagonista, esta profissão caída em desuso, não deixa margem depois para ainda abichar umas massas com uns biscates? Não seria estranho vir colar com fita-cola o que se desconchavou à machadada? Não vê que me seria muito mais fácil passar-me para esse discurso de salva-vidas, esse modelo de crítica que não passa de um esquema de agenciamento de ‘talentos’, essa persistência dos senhores sentados em cadeirões à espera de beijinhos no anel, apadrinhando tudo o que para aí vai virando a lata da linguagem como se deixassem os fins de rua impacientes, coçando-se? Porque este que me chama jornaleiro, este sim é o exemplo acabado do nosso cacique de província, seguindo a galinha na estratégia dela para encher o papo, colhendo os agradecimentos não de umas “ratazanas”, mas de uns hamsters que gastam a energia de voltas ao mundo naquelas rodas tão frenéticas como as contas do terço na mão das beatas que entopem o sinal para Deus. Vir-me com a conversa de que ando satisfeitíssimo comigo próprio é um tanto como vir uma mulher com que nunca me deitei acusar-me de foder murcho... O que é que se vai fazer? Sair de casa para apanhá-la e fazer-se-lhe à força? Mesmo descontando os aspectos morais, ou o risco de ir bater com os ossos na choldra, e se ela for muito feia? 
Haverá sempre quem nos atire à cara o nosso próprio descontentamento, quem erga o seu espelhinho fosco e inverta o sentido das palavras que usámos, quem saiba aproveitar este curioso ânimo com que se volta o bico ao prego, e se elege o tipo que se coloca na posição mais frágil, expondo-se, atraindo contra si a sanha de todos os que, sentindo-se difamados na honra dos seus escritos literários, ao invés de um duelo ao luar, irão conjurar-se numa campanha difusa, constante, arrolando mais e mais testemunhas, provas do mau carácter desse sujeito que andou dizendo por aí que a concentração de merda de um dos lados do barco punha o risco de a coisa virar e acabar tudo servido de comida aos peixinhos. 
No outro dia, era um desses órfãos de talento que se indignava com o ataque à tendência para ir enrolar os versos na patinha do primeiro pombo lerdo, com instruções de que se fosse depenando pelas janelas do pequeno largo, esse sim um seguidista, mas por falta de cérebro, e que, entretanto, também já foi a correr partilhar o texto. Tipo que, em tudo o que escrevo, só vê um “ajuste de contas”. Por mim serve. É um ajuste de contas com as últimas décadas de um vazio que tem causado muito chorume mas que, quando se traz um Lázaro qualquer para a equação, logo se vê como as muitas viúvas o apedrejam como a uma mera assombração, uma afronta à memória. A crítica não tem direito a renascer, pois só pode vir para o meio de nós se apontar o dedo a ‘dejectos’ já sem nenhuma frescura. Deus a livre e guarde de mandar retirar a bosta antes das moscas terem acabado a sua refeição. E como moscas há sempre, e são mais, a crítica fica sempre em minoria. Além de que a voz das moscas se confunde e cresce, ao passo que a dos críticos só ajuda a afinar distâncias. Ora, o assistente social da poesia mais chata do que propriamente marginal, há muito me vem acusando de “histeria belicista”, de golpes publicitários para atrair as atenções, e também aí devo ser “um agente duplo algo esquizóide”, uma vez que não me canso de provocar distúrbios, e para quê? Como é óbvio só pode ser porque preciso da atenção dos outros como de ar para respirar. Aqui entra aquela música tenebrosa, vê-se um ser estrepitoso em fundo, a alimentar-se de órgãos arrancados às fadas da literatura portuguesa, faunos que brilhavam pelos verdes campos colhendo os cabelinhos brancos de auroras clássicas, e que agora têm ali os seus restos esventrados fazendo a escuridão engasgar-se sem esperança na mais breve cintilação. Este monstro que tem perturbado a alegria espantosa da diversidade literária de uma época, já de si pagando o preço de outros agentes corruptos no mais vasto plano político, este ser que mais valia debaixo da terra a adubar a paz dos campos que perturbou, sou, minhas senhoras e meus senhores, eu. Esfaimado de atenção, um buraco negro da... estão ver a ideia. O curioso, para lá deste rápido diagnóstico de psicopatia feito à distância, é o modo denunciado e sem estratégia, de cão a correr atrás dos carros sem saber o que lhes fazer se os apanhar, esta necessidade de impor “discursos castradores da diversidade”. (Com esta do “castrador” eu fico, perdoem-me o hábito de apanhador de conchas – quanto mais banais, quanto mais se vê como o mar as desfaz, tentando fazer delas garfos mais lhes acho graça). Nem perco mais tempo com a ideia de que estou a encher de vergonha o formato dos folhetos. É uma acusação tão estúpida que me iliba. Venham os folhetos, chovam, façam de mim um Noé a recolher casalinhos desde o percevejo ao elefante, agora, deixem-me lê-los. Se é para vir a enxurrada, parece-me um pouco triste se, com toda essa água, venhamos a dar com a morte por via da desidratação. Todos borrados, com essa água inútil a raspar-nos as tripas. 
A questão aqui é que se está a tentar passar para a literatura uma função que a senhora sempre enjeitou. Agora, porque os tempos andam muito maus, essa zona por natureza restritiva vai ter de ser tomada como um estádio de futebol a acolher os refugiados de todas os outros palcos da vida de onde saíram sob pateadas? Agora, cumpre-nos ficar à porta, e em vez de sacudir até aos ossos quem lá vem, estamos obrigados a distribuir cobertores, bolachinhas e ainda lhes fazer festas. Eu não recebi a circular. Sei que até na Colóquio Letras já mandaram dizer que polémicas: nicles. Não dá. Isto agora tem que estar tudo muito bem fundamentado. E se bem fundamentado, como toda a gente sabe, os mauzotes só são assim porque levaram muito com o cinto dos pais, porque as mães os deixaram a chorar rios no berço a ver se zarpavam. Já só há um pecado mortal: pisar nos vestidos dessas noivas que entram pela literatura como por uma igreja, com o delírio a segurar-lhes o braço, e, lá ao fundo, sorridente, a glória eterna. Foda-se lá esta gente. É que mesmo que fosse para casar, que fosse para a glória e eternidade, não tinha mais jeito esta coisada toda se nos desse algum trabalho? Se houvesse um esforço desumano, para inspirar mais do que a caridadezinha. Mas então sai-se para literatura para fundar casas da misericórdia? No meio desta candente benevolência em que o sôtor me acusa, com toda a razão, de ser um agente com as piores intenções, "ao serviço da decrepitude cultural" (ai, jesus, até corei), fico sem perceber para que serve uma diversidade cultivada dentro de estufas, esvaziada de um poder colonizador, o oposto de uma semente que escava o solo mais duro e até se lambe, capaz de crescer enfrentando a intempérie, desafiando e beneficiando-se das piores condições. Não está uma crítica veemente mais capacitada para produzir um desejo de superação, uma fome de mundo crescente, pondo-se a poesia a ripostar-lhe marchando petulantemente sobre as barreiras que lhe erguem? 
Não me causa já grande comichão na medida em que me habituei a este estado de paixão que definha por tudo e por nada, que soçobra à primeira contrariedade. (Tive um poeta que certa vez me ia desfalecendo nos braços depois de me ter mostrado um poema que tinha escrito no telemóvel, tendo em troca ouvido coisas com as quais de todo não contava. Só não me caiu nos braços porque não lhos estendi. Caiu no chão. Foi num bar abaixo do nível do solo, já para a malta se ir habituando. Contrariamente à fama, tinha mais puetas do que bêbedos, e mais bêbedos puxando os espíritos da bebida do que espíritos com os pés de molho naqueles álcoois.) Pela minha parte, estou farto destas cumplicidades entre pequenos egos, tão frágeis, este modo de buscar a unha onde, de certo ângulo, se capta um brilho de oiro, um indíciozinho salvante, como faz o sôtor, para nos convencer que estamos, na verdade, sentados sobre um El Dorado das letras, com um bando de editoras convivendo em harmonia, cada uma com o heroísmo de uns pauliteiros de Miranda, uns grupelhos de cante alentejano que ocupam depois da hora de expediente o clube da bisca de Montanelas, ou a banda filarmónica de freiras, gnr’s ou da associação dos aviadores sem avião que se reúnem no ginásio da C+S de Manteigas... Viva a diversidade. Por este andar, vamos todos acabar no guiness, se não for pelo “País dos Poetas” será por outro record mentecapto qualquer. Portanto, e no que respeita ao ajuste de contas, é isto meus senhores: não vai daqui um tostão para o peditório das boas alminhas, e acho mal que se queira fazer da poesia outro desses carnavais com marchas de orgulho disto, daquilo, de cada coisa e do seu contrário. Depois dessa cegada toda, muito humanitária e tal, o que fica para os versos? Provavelmente não mais do que o que ficará para os vermes. 
Como é que se defende a poesia deste estado geral de mediocridade (esse, sim, muito contentinho consigo) fomentado por uma democracia que só se mantém vibrante no que diz respeito aos consumos? Será que o sôtor não está a ver, por entre toda essa ganga justiceira, brandindo a espada de papelão em favor dos 'oprimidos', que não está fazer mais que o servicinho a uma ordem de valores (esses sim) presumidos, e que nivelam tudo por baixo? Uma estabilidade que se congratula com aquela noção que desvelou Leonard Cohen ao escrever: "Each man/ has a way to betray/ the revolution/ This is mine". Não será esta poesia tão acolhedora só um aquecedor para os pés frios de quem chega a casa estronchado pela vida e precisa porque precisa espetá-los em cima do aquecedor eléctrico? Eu percebo a coisa do frio, também me dá, e preferia mesmo morrer como as bruxas (como se vê), esturricado, mas não é uma traição fazer da poesia um electrodoméstico para aquecer os penantes frios da alma? Acho sempre graça aos inconformistas que, na verdade, só perdem mesmo a cabeça quando se lhes mete à frente alguém que leva a sua liberdade até à abjecção, que é, como sabemos, “o resultado de querer ser livre em português”.


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