quarta-feira, fevereiro 14, 2018


É feio o céu daqui e uma outra terra
descolou já desta, levou a rosa
de que o vento colheu a forma
e foi pelo deserto comendo gafanhotos
Eis que damos uns pelos outros
rindo desses rapazes adoidados que
por um fio de guita parecem seguir
algum continente perdido, o meu
é um Noé dos fundos, dos bichos
de escritório e seres de conta perdida
que outros matam sem remorso mas ele
cuida, povoando o seu infantário

Em algum momento suspeitamos
que isto virou, as leituras proibidíssimas
de outrora, quando a casa inteira sucumbia
dão-se a ler hoje desdenhosas
e os gatos que antes vinham
só nos deitam miradas trocistas
não há como nem assunto e parece
que por nada deste mundo voltaremos
a discutir em voz alta nos cafés

A carne também foi muito cedo
logo se fartou de nós
das nossas tristes paixões tão breves
e agora só picadas de abelha
algum corte fresco a incham
nos recordam o gosto, a cama e o pão
entre os quais partimos o mundo
Estão quase ilegíveis
os velhos apontamentos sujos de vida
como as medidas tomadas
nalgum quarto mais fundo, com uma lanterna
arrancando as pétalas da noite

mas abro um lenço antigo teu
espalho as migalhas da lua
e as sombras do meu trabalho devoram-nas
quase imploro abençoa-me luz enraivecida
possa um verso com o escândalo inteiro
da tua despedida, lembrar-me a cintura
que me fez passar noites a meio das escadas
emagrecido alto com alfinetes entre os lábios
e em baixo o silêncio como um coro
até que o anjo de um desesperado instante
viesse buscar-me

ouço os meus passos, descansam-me
há uma rua lentíssima nesta história
onde todos já me conhecem
onde se é feroz ficando ali imóvel
amachucado pelo vento e
como no verso de Emundo de Ory
gemendo em cima da rosa

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