quinta-feira, novembro 09, 2017

Morabeza, um festival literário em Cabo Verde



(abre as imagens noutro separador para as ampliares)

[As antas (Cantinho & Cia) já vieram acusar a incoerência de ter aceitado o convite do Ministério da Cultura de Cabo Verde para ir lá ver (enquanto jornalista - com o óbice de me disponibilizar para moderar uma das sessões) como se desenrolava o festival literário. Porque um tipo não pode manifestar-se contra os festivais, ser crítico e, ao mesmo tempo, saber do que fala. Tem de resignar-se ao ermitério, só lhe restando ficar à margem de todas as manifestações culturais do pífio tempo que lhe foi dado viver. Por este prisma, toda a crítica devia ser simplesmente desdenhosa em relação ao que não a convence.]

Nos primeiros dias do mês, a Cidade da Praia estreou-se enquanto palco de um festival literário, reunindo 40 autores lusófonos, metade dos quais cabo-verdianos, num programa que diluiu o torrão de açúcar das nossas letras no chá de um país hospitaleiro

Dez ilhas como migalhas sacudidas da saia da Criação quando esta se levantava da mesa de trabalho. Descaídas sobre o lado esquerdo, no coração do Atlântico, assim vieram a dar com elas os portugueses,  no século XV, como uma frota estática de basalto negro, sem uma só alma a bordo. Virgens até tão tarde, acabaram por ser testemunhas do que houve de mais aventuroso e sórdido naquele entreposto estratégico entre Portugal e o Brasil, e que foi chave nas rotas do comércio de escravos. Mas desiludamos os que entregam facilmente o ouvido a essas lamúrias sobre o nosso cruel passado como colonizadores, bandeiras de quem se apresenta como justiceiro tardio e vai ao passado fazer caça para cozinhar a má-consciência que depois serve fria aos outros. Vale mais chegar a esse país com o assombro de uma descoberta e uma inquietação que não se precipite em juízos bacocos sobre o passado, que afinal foi num mundo inteiramente diverso do nosso. É bom, de resto, retirar algo da paciente sabedoria com que o poeta José Luíz Hopffer C. Almada, a escrever sob o nome de Ezeami di Sant’y Águ, à cabeça de uma série de micro-poemas em crioulo notou que: “Nungen e ka abusulutu:/ Si Dios ka diskunfiaba di si kabesa/ el ka ta kriaba Diabu [Ninguém é absoluto:/ Se Deus não tivesse desconfiado de si próprio/ não teria criado o Diabo].
Em Cabo Verde, na Cidade da Praia, entre 30 de outubro e 5 de novembro decorreu Morabeza – Festa do Livro, um festival literário na linha dos que temos visto multiplicarem-se por cá, mas com a vantagem de chegar àquele país insular não só como uma estreia, mas mais que isso uma resposta à vontade do país  chamar a si o mundo, tentando também “colocar no mapa” a sua literatura. Isto mesmo enfatizou Abraão Vicente, ministro da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde.
Foram cerca de 40 os autores lusófonos que participaram no programa, a maioria escritores, mas também artistas, académicos e figuras destacadas da sociedade cabo-verdiana. Dividindo-se entre mesas de debate, concertos, sessões de poesia, acções de formação, visitas a escolas e universidades, foi evidente o esforço da organização por promover um encontro entre algumas das figuras consagradas bem como emergentes da literatura do país e o pelotão estrangeiro que a Booktailors (a empresa contratada para organizar o evento) sempre mobiliza nas iniciativas que tem a seu cargo. Não foi surpresa assim encontrar na Cidade da Praia a habitual embaixada volante: José Eduardo Agualusa, Mia Couto (que por motivos pessoais à última não pôde meter-se no avião, mas prometeu que virá na edição do próximo ano) Valter Hugo Mãe, Afonso Cruz, Alexandra Lucas Coelho, Francisco José Viegas... Em entrevista a este jornal, Abraão Vicente fez, no entanto, questão de sublinhar que as escolhas dos participantes foi decidida pelo Ministério da Cultura e que a Booktailors se limitou a tornar possível que pela primeira vez o país recebesse uma iniciativa que, a um tempo, pretendeu ser um “palco internacional” e “recativar a literatura do arquipélago”.
O ministro referiu ainda, numa entrevista concedida à “Renascença”, que este festival assumia a pretensão de marcar um corte com a última década e meia, em que “a Biblioteca Nacional e as políticas editoriais do Estado estiveram descativadas”. E com todas as reservas que anteriormente levantámos à centralidade que, em Portugal, tem assumido a Booktailors na organização de uma série de iniciativas de promoção do livro e da leitura com fundos públicos, é indesmentível que, no que respeitou à organização do Morabeza, a empresa fez um trabalho impecável. A única mancha e a queixa que mais vezes se ouviu da parte dos visitantes bem como de alguns dos participantes cabo-verdianos prendia-se com o preço dos livros trazidos de Portugal.
Algumas vozes sublinharam o facto de dificilmente o festival poder reclamar o título de “Festa do Livro” se se tiver em conta que a muito limitada oferta de livros à venda no átrio da Biblioteca Nacional (onde a maioria das iniciativas decorreram) estava completamente desfasada do poder de compra dos leitores num país onde o salário mínimo é 110 euros. Os responsáveis da organização notaram que não podiam ter feito mais do que fizeram, uma vez que foram mantidos os preços de capa dos livros em Portugal, e que não só não foi cobrado qualquer valor pelos custos de importação como ainda havia uma pequena secção de livros em saldo. A um décimo do preço dos outros, esses sim estavam a preços razoáveis para os bolsos dos cabo-verdianos, mas nem a diversidade nem a escolha eram particularmente entusiasmantes, e com pontuais excepções, foram privilegiados os autores que integravam o programa do festival.
Quanto às sessões e debates, nada do que vimos destoa e nem aquece ou arrefece o sangue a quem por cá já se habituou a este género de eventos, onde impera a lógica conversacional que, naturalmente, resvala tantas vezes para a tagarelice, temperada pelo inescapável anedotário, as confissões mais emocionadas, uma ou outra sugestão de leitura e alguma citação mortífera que nos sacode de um estupor de aluno em sala de aula e nos lembra de que é a literatura o eixo difuso desta ‘festa’ sempre um tanto murcha.
Felizmente há a própria ilha, a sombra que tentava fugir-nos atarantada, pedindo clemência a um sol que reina ali o ano inteiro. Houve o impressionante reencontro para os escritores portugueses com a antiga colónia penal do Tarrafal, onde uma escola vem há décadas amenizando uma dor que ainda revolta. (E disto nos dá melhor testemunho o poema de Jaime Rocha que publicamos mais abaixo.) E há essa gente com “o mar cavado na alma", um sangue tão vivo de murmúrios, uma gente raríssima, que conta com pouco mais de meio milhão no arquipélago e o outro meio espalhado pelo mundo, numa diáspora que, à proporção, tem poucos rivais. E há a “pele escura dourada”, os “híbridos mistérios da mestiçagem”, no rosto expressões dividas entre um peso indecifrável e uma facilidade em pintar um sorriso em “aguarelas de ternura”. É um país pobre, onde o tempo ainda estala cada uma das suas articulações, e não é difícil sentir que nele somos como fantasmas num território com algo de tão próximo, familiar, e que, de súbito, nos atinge na lonjura dessa vertigem que nasce da sensação de que ali nos bastaria apenas “a água fresca/ o cântaro e o trovão”, indo por aquelas estradas esverdinhadas, dando o ouvido a uma língua que corta o ritmo do português e nos faz entender, como diz o poeta cabo-verdiano António de Névada, que a sua “voz é esta mão desordenada que deflagra,/ não a harmonia bíblica, a profana dissonância/ do espanto!”



POEMA SECO
de Jaime Rocha

Bastava uma pessoa para que o meu peito
rebentasse de agonia nesta erva seca.

Bastava uma pessoa ter deixado aqui
o sangue, os ossos e as suas tripas
se tivessem espalhado ao vento.

Uma pessoa, cinquenta, cem, mil, tantos
braços juntos, tantos gritos.

Bastava uma pessoa, um corpo nu
a apodrecer ao sol para que das suas veias
nascesse outra vez o mundo e o mar
falasse contra o esquecimento.

E agora neste campo seco, neste dia
luminoso, estão à nossa espera,
à espera dos poetas, a professora Natércia
e os seus alunos da Escola do Chão Bom.

São os seus rostos, as mãos pequenas
nos cadernos, os olhos deslumbrados,
que enchem de fulgor este poema seco.

Há um silêncio dourado nestes muros,
um vazio insuportável, uma memória
que rasga a ausência das casas.

Aqui, debaixo desta árvore que sobrevive
ao tempo, do lado de lá do portão grande,
o túnel do mal, uma criança, cinquenta, cem,
mil, tanta esperança junta à volta da professora
Natércia, as crianças do Chão Bom escutam
a voz dos poetas como se dissessem,
em uníssono: - Escrevam palavras para nós.

E o poeta leu para as crianças do Chão Bom:
- Uma pessoa, cinquenta, cem, mil, tanta
morte autorizada, mas este poema seco
que vos deixo ainda tem lágrimas dentro. 

Nota: Este poema foi escrito após a recente visita que fiz, com outros poetas, ao Campo do Tarrafal, na ilha de Santiago, integrado no Festival Literário Morabeza, onde tínhamos à espera a professora Natércia e a sua turma do 9.º Ano da Escola Secundária do Tarrafal. Agradeço a estas crianças serem uma presença viva e de esperança num lugar com uma memória insuportavelmente triste. 

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