Álvaro, Ricardo, Bernardo, Alberto, Fernando,
sentaram-te ali no Chiado, mãozinha ridícula pousada na mesa, nem o
prazer de um cigarro, nem o copo de vinho, de aguardente ou de absinto.
Nem poesia, nem chocolates. Só lojas, gente feia, turistas sem
metafísica que vão sentar-se a teu lado, dar-te a mão e tirar
fotografias como se tu pudesses algum dia ser uma imagem.
Sentaram-te ali, muito direito como tu nunca foste, porque tinhas sempre
os ombros curvados como aqueles que não se podem enganar a si mesmos
sobre a inutilidade de todos os gestos, sobre a impossibilidade de todos
os sonhos, sobre o absurdo de todo o existir.
Puseram-te ali à mão
de semear de turistas, consumistas, artistas de rua, logo tu que tinhas
uma repugnância total por todos os que não percebiam à partida a sua
derrota. Logo tu, que sabias ser irónico e mordaz, logo tu que não
perdoavas o logro. Logo tu...
Ah Fernando o que eu gostava era de
te ver levantar dali daquela cadeira de pedra e distribuir lambada e
pontapés, numa violência que este tempo condena. E chocar as
esplanadas ociosas que te contemplam sem te ver. Gostava era de te ver
percorrer as livrarias, as editoras, vir aqui a esta casa museu onde te
enterraram para dar emprego a uns quantos maus escritores, e queimar
tudo isto. Queimar tudo. Queimar, como Virgílio queria fazer com a
Eneida, porque percebeu, como tu, que nenhum homem, nem mesmo os poetas
geniais, podem tocar o absoluto.
Nos quartos onde tu viveste
miseravelmente erguem-se agora senhoras e senhores gordos que querem ser
teus donos. E escrevem livros e fazem colóquios a ensinar-te. A
ensinar-Te, calcula tu?
E vendem-se a bom preço uns bonecos
esfíngicos do que se pretende teres sido tu: silhueta preta, oculinhos,
chapéu. Vendem-te, Fernando. Vendem-te e vendem-te. Uns como
conhecimento, outros como objecto “made in china”, para pôr no
frigorífico, para beber leite, para compor a estante.
A pouco e
pouco as tuas palavras desaparecem sob as palavras que outros querem que
tu digas. Sobre a poesia que dizem que tu escreveste. A pouco e pouco
desapareces sob a imagem que o Almada fez de ti e onde tu já não
habitas. Alguma vez habitaste? Como poderias? Tu que fugiste de todas as
imagens, de todas as utopias.
Continuam a querer-te casado com a
tal da Ofelinha, ou maricas, mas sempre quotidiano e fútil. Qualquer
coisa que sirva para nós sentirmos que te possuímos. Como se a poesia
fosse coisa que se tivesse ou não tivesse.
Arranjaram-te tantos
heterónimos quantos estudiosos e viúvas e viúvos. Cada um quer achar o seu
e dar-te mais um nome. Porque achar um nome é achar uma prisão.
Querem-te ali sempre igual à imagem que inventaram para ti. Mas que não é
a tua. Tu não tens imagem.
Queria era ver-te aqui a
desmentir-nos a todos, com as tuas roupas elegantes e velhas, a tua
falta de dinheiro, o teu cansaço, o teu desespero. Queria ver-te aqui
quando eras um homem ignorado pelas mulheres e bebias copos solitários e
rias e não eras um mito. É provável que nos fôssemos logo todos
embora. Eras um bocado excêntrico, solitário, exalavas derrota e as
pessoas não gostam disso. As pessoas só gostam do sucesso. E até fizeram
de ti um morto de sucesso.
Ao velho que serias hoje ninguém
daria lugar no eléctrico. Terias uma reforma miserável de 500 euros e é
provável que não encontrasses editora que olhasse duas vezes para os
teus poemas. És demasiado simbólico, metafisico, confessional. És muito
pouco coloquial. Terias que dar uma no Ezra (Pound) e outra no T.S.
(Eliot). Terias que ser cool, ter hype, aparecer nas revistas, ir à
televisão. E tu não tinhas jeito para isso.
Não ias em modas, nem saberias como ir. Eras frágil, tímido, tinhas vergonha de existir.
Esta gente que hoje te celebra não gostaria de ti. Porque esta gente,
os tais da nossa pátria, a Língua Portuguesa, gostam é da Matilde Campilho e
do Valter Hugo Mãe, e de poesia com trocadilhos do Caralho.
O mundo,
como sabes, está cheio de génios e os génios são sempre aqueles que
estão perto do poder. Se vivesses hoje em Lisboa não terias dinheiro
sequer para pagar um quarto, porque estão todos alugados aos turistas
que vêm sentar-se e dar a mão flácida à tua estátua. Não terias
certamente o Esteves na tabacaria e quase não terias jornais.
E estamos hoje aqui, Fernando António Nogueira Pessoa, para te matar mais uma vez.
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