sexta-feira, outubro 14, 2016

Poetas e outros oficiantes


Falarei de Itália, mais precisamente de uma discussão pública nesse país sobre a poesia e o seu “público”. A Itália, vista do lado de cá, é um país transalpino e, segundo o mapa Google, de Lisboa a Roma, por terra, distam 2509 Kms. O século XX foi o século de ouro da poesia italiana. Romances à altura do cânone europeu, também os houve. Mas a poesia foi muito mais forte e teve maior poder de irradiação. Em 2015, a edição de poesia em Itália sofreu um golpe que não foi nenhuma surpresa para quem conhece o meio e acompanhava desde há várias décadas as manifestações de uma doença sem nome, mas nada misteriosa: chegou ao fim, por morte natural e infligida (no ramo da cultura, as duas são compatíveis) a colecção mais importante e mais famosa de poesia em Itália: Lo Specchio (O Espelho), da editora Mondadori. Desapareceu, portanto, a colecção onde foi editado Ungaretti, Montale, Zanzotto, Quasimodo, Saba e muitos mais. O acontecimento funesto provocou muita discussão pública e muitos balanços e análises do estado da arte, isto é, da poesia. Alguns apocalípticos chegaram mesmo a declarar em papel impresso de jornal: “A poesia morreu”. Uma das figuras que mais se destacou nessa discussão pública foi Alfonso Berardinelli: porque é o mais importante crítico literário italiano em actividade e o que mais escreveu, em registo ensaístico, sobre a sua actividade de crítico, sobre a crítica como género e na sua relação com a crítica da cultura; porque em 1975 tinha publicado uma antologia de poesia italiana, Il pubblico della poesia, onde a questão da falta de leitores era tratada na Introdução. Uma versão actualizada dessa antologia foi reeditada em 2004. Berardinelli, descreve assim a situação: a poesia em Itália é quase só lida pelos poetas e por quem aspira a sê-lo. Os poetas são mais de mil; mas a tiragens dos títulos de poesia são tão reduzidas que temos de concluir que há mais poetas do que leitores de poesia. O que não impede que haja uma forte actividade editorial, exercida por pequenos e pequeníssimos editores que renunciaram à lógica do mercado, enquanto os grandes se foram ausentando da poesia, até chegar agora a vez da Mondadori. Acrescente-se que esta desproporção entre o número de leitores e o número daqueles que escrevem poesia não é umaboutade desse enfant terrible chamado Berardinelli. Um importante ensaísta e professor de literatura, Alberto Bertoni, num livro que se chama La poesiacontemporanea (Il Mulino, 2012) insiste também nesta desproporção, retirando a óbvia conclusão de que uma grande parte dos escritores de poesia não são leitores habituais de poesia. Berardinelli tenta pensar esta nova condição em que abunda a poesia, mas falta o seu público. E quando não há público não há as livrarias onde se vendem os livros de poesia e não há crítica (ou será também o contrário?) e esta é supérflua ou transforma-se num tribunal arbitrário, onde quem rompe o silêncio surge como legislador absoluto, mesmo que não o queira. Ao contrário do romance, a poesia não corre o risco de ser corrompida pelo mercado; mas facilmente é corrompida por si mesma, pela alta ideia que tem de si, por se imaginar não contaminada. Como pode então definir-se um crítico de poesia? Um intruso ou um “críticosenza mestiere”, sem ofício, diz Berardinelli. Mas tudo isto é uma mal transalpino. E não é uma tragédia porque desde sempre o país é mais dado à comédia. Para cá dos Alpes, ainda ninguém se declarou senza mestiere. Mas, já agora, o que se passa para cá dos Alpes? Poderiam informar-me, para continuarmos uma discussão necessária?

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