«Enquanto o Destino mo conceder,
continuarei fumando.»
Álvaro de Campos
Dentro de um milhão de anos,
ou talvez pouco menos compreendas
que fumando assisti ao trânsito dos dias
e em círculos de fumo percebi palavras de ternura.
Então descobrirás que havia coisas simples,
rostos, pedras e pernas
quebrando a frialdade das manhãs
e um mundo que era de homens, bichos, crianças.
Então talvez entendas
porque passei fumando as curvas dolorosas,
porque fumando escrevi poemas
e a fumar testemunhei a crueldade.
Mesmo que nada digas – e mais vale o silêncio –
mesmo que nada faças, mesmo que te comovas,
– na distância de fumo a separar-nos – sentirás
onde era o coração, um peso ou uma lágrima?
Onde eram os lábios uma dor ou um fumo
que deixei nos cafés, que entreguei nos beijos,
que guardei, inútil património, nas gavetas com contas.
Então calcularás quantas foram as vezes
em que falei com Deus, em que estive sozinho,
quantos crimes inúteis pratiquei,
quando fui anjo sem o perceber.
Na tua solidão, procurarás nos bolsos um cigarro
e não o fumarás.
- António Rebordão Navarro
in A Condição Reflexa, Imprensa Nacional
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