O PODER DOS ESPECTROS
O jovem cantor canadiano Justin Bieber anunciou que se vai
retirar. Não revelou porquê, mas não devemos negligenciar a sua capacidade de
perceber as regras próprias dessa coisa chamada glamour, que tem a ver com uma magia e é tudo ou nada, ou tudo e
nada. Essa coisa designa um poder de encantamento (neste caso, com acção
limitada a um público de adolescentes e pré-adolescentes) e é dotada de uma
estética (os índices do corpo), de uma retórica (as “secreções” desse corpo,
isto é, aquilo que se forma em segredo) e de uma gramática (do obsceno, do que
se põe em cena). Chegado aos dezanove anos, prestes a deixar de ser teenager, Justin Bieber já está na idade
da reforma. O glamour, terá ele percebido, é a moda, a arte do efémero, da
passagem, da mudança, do “transitório”, como disse Baudelaire do moderno. Mas a
sua breve carreira foi um concentrado de tempo. Mal tinha deixado de ser
criança, já estava envolvido pelo espectro do corpo-máquina de star, já se exibia como uma sex machine, enfim, já estava reduzido à
sua superfície, tratado como uma película, prometendo sempre algo que ele – nem
ninguém – não pode oferecer. Mas o seu corpo sexuado, aquilo que de sexual esteve sempre em jogo no seu corpo de
star, não fazia senão maquinar essa
promessa: a promessa do impossível, uma promessa que dá um corpo à ilusão.Seja ela uma promessa de ilusão ou a ilusão de uma
promessa, certo é que há uma relação directa e objectiva entre a promessa e a
ilusão. E daí esta contradição a que esteve sujeito: ainda não tinha atingido a
age of consent e já estava a ser
acusado de agredir sexualmente raparigas mais velhas do que ele. Quando, ainda
de acordo com as representações sociais e simbólicas, só podia ser uma vítima,
já estava a passar ao acto. O seu caso é interessante precisamente neste
aspecto: ele mostra na perfeição aquilo a que alguém já chamou “sociedade do
espectral”. Um corpo de star, a sua
produção mágica e maquinal, é a superfície sensível do aparecimento de um
espectro, isto é, o corpo de uma star
é uma máquina de produzir a superfície sensível de um espectro. O glamour só pode ser espectral e
fantasmático. E o que é que esta “sociedade do espectral” tem a ver com o que
foi designado como sociedade do espectáculo? Um texto de Artaud, onde ele diz
que se encontra perante “espectros que querem comandar o real”, talvez nos
ajude a responder: a sociedade do espectáculo tem a sua soberania no poder de
controlar os corpos através de espectros, de marionetas, de stars. O processo tem um correspondente
na ideia, desenvolvida pela primeira vez por Marx, de que a mercadoria é dotada
de uma característica a que ele chamou “fetichismo”. E dá o exemplo de uma
mesa: “A mesa é um objecto de madeira, sensível, comum. Mas quando surge como
mercadoria transforma-se num objecto que é ao mesmo tempo sensível e
supra-sensível”. Em suma: ganha um valor de troca que eclipsa o valor de uso,
ganha uma voz que esconde a sua natureza material. Assim entendida, a mercadoria
oferece-se como uma forma integrada no sistema simbólico da sociedade que a
produziu. E é por isso que os objectos são portadores de significações sociais,
trazem consigo, nos seus mínimos detalhes, uma hierarquia cultural e social. A
lógica da mercadoria, que se estendeu , como seu poder expropriador, a todos os
domínios da vida social e até à linguagem, representa um grande espectáculo em
que todos nós – e não apenas o Justin Bieber – estamos submetidos. Com os novos
sistemas de controle informático, o olhar do outro ganhou agora o alcance de um
panóptico de escala planetária.
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