DUAS OU TRÊS COISAS QUE SABÍAMOS DE NÓS
"Pouco sei
de nós que possa dizer, e que queira dizer. Sei – entraram uma vez, há
muitos anos, na minha cabeça e no meu coração e lá ficaram para sempre –
alguns versos perdidos e pouco mais (e o cobrador sabe sempre / quando o
silêncio tem pó / e é perfeito). E outras coisas, mais secretas e mais
fugazes, imagens breves, uma palavra ou outra, o último transido abraço
poucos dias antes da sua morte.
Andávamos com os «Poemas quotidianos» no bolso e partilhávamo-los
avaramente, nos cafés e nas longas noites solitárias da adolescência,
como um fogo comum, um sinal que nos identificava uns aos outros como
membros da mesma tribo errante; éramos todos jovens, ou julgávamos que
éramos, e acreditávamos, naqueles tempos controversos, que nos havia
sido dado o dom de, pela poesia, compreender e mudar o mundo e a vida.
António Reis não o sabia, mas todas as palavras que então possuíamos
eram as suas.
E um dia a notícia correu pelas esplanadas do Carmo e passou
rapidamente de boca em boca. O António Reis estava a preparar uma página
de poesia para o «Jornal de Notícias»; tinha convencido o dr. Nuno
Teixeira Neves a entregar o número da Primavera do seu «Suplemento
Literário» aos jovens poetas do Porto (o que quer que isso de jovens
poetas do Porto fosse e era, asseguro-vos, algo muito misterioso) e
queria poemas jovens e primaveris (o que quer que isso fosse também).
Acorremos em massa, os jovens, os poetas e a Primavera.
A primeira reunião foi em casa do António Reis, nas margens do
Douro, do lado de Gaia. Entrámos todos timidamente, quase com medo, o
Chico, o Manuel Bernardo, o Rui, o Madureira, o Eduardo Guerra Carneiro
(e tantos de que já não me recordo!), como se profanássemos um santuário
ou a nossa própria intimidade. Levávamos os bolsos cheios, em pequenos
cadernos, folhas soltas, incipientes livros, com o melhor que tínhamos: o
coração. E o Reis recebeu o nosso coração com o seu enorme coração
aberto. (É provavelmente piegas, isto, mas não consigo dizê-lo de outro
modo. Porque é verdade?)
Nunca tínhamos lido os nossos poemas em público. Lemo-los para o
Reis e ele ouviu-nos, durante horas, com infinita paciência, e não menos
infinita ironia (muitas vocações terão ali acabado, naquela noite
terrível, e foi o Reis que lhes deu, com doces e duras palavras
paternais, o golpe de misericórdia!). Dessa bela e nocturna noite
recordo o fatídico momento da leitura do meu poema. Eu também nunca
tinha lido um poema alto, e comecei a fazê-lo com o orgulho agressivo de
quem espera o pior e sabe de antemão que esse pior será injusto. Antes
de mim, o Manuel Bernardo tinha lido o seu, era qualquer coisa do género
«Amanhã vamos fazer as coisas mais belas do mundo, etc., etc.», e o
Reis tinha comentado, fulminante, ainda o último verso ecoava
perplexamente na sala: «Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje,
Manuel Bernardo!».
Já não me lembro do poema que li, perdi-o entretanto para sempre em
alguma gaveta das muitas casas por onde passei. Lembro-me só que,
terminada a leitura, o Reis me perguntou: «Você conhece o Ponge?». Eu
não conhecia, e o Reis foi lá dentro e trouxe-me um livro: «Acho que
você há-de gostar». Eu não sabia se aquilo era um sim ou um não; mais
tarde soube que era um sim, o poema saiu na página da Primavera do JN,
aliás ao lado do do Manuel Bernardo e dos poemas dos outros todos!
A partir de então começámos a encontrar-nos mais vezes, e ainda
enchemos com os nossos imaturos sonhos e rimas outra página do
«Suplemento Literário» do dr. Teixeira Neves. A casa do Reis já era
pequena, e imprópria para tantos poetas e tanto barulho. Mudámo-nos para
cafés fora do tempo e do espaço: o Piolho, o Estrela, o Magestic. E,
quando, às duas da manhã, os cafés fechavam, para o salão de
cabeleireiro da Rua de Guedes de Azevedo onde o Madureira tinha
arranjado emprego, o «Salão Capri», de sua graça (acho que ainda
existe).
Depois, aos poucos, os poemas começaram a escassear e a figura do
Reis a perder, com a sua fácil amizade, algum mistério. Ficámos
reduzidos a uma pequena meia dúzia; o Reis continuou a falar-nos de
poetas e de poesia e nós a ouvi-lo religiosamente, até que ele partiu,
finalmente, para Lisboa. A última memória que tenho das sessões poéticas
do «Salão Capri» é uma longa correria, debaixo da chuva, entre o Piolho
e a Rua de Guedes de Azevedo. O Reis ia à frente, com o inevitável
casaco de couro aberto ao vento, e nós atrás, sobraçando folhas
dactilografadas e rindo (o Madureira queixava-se que deixara cair e
perdera, nessa noite, algures sob a tempestade, um livro inteiro de
poemas, coisa em que todos – que tínhamos também, cada um, as suas
mentiras – fingíamos cumplicentemente acreditar). Tentei várias vezes,
em vão, escrever um poema a partir da imagem desses seis ou sete poetas
primaveris em louca correria atrás dos «Poemas quotidianos», fustigados,
os poetas e os poemas, pela mais prosaica das chuvas. Mas a poesia,
aprendi depois (e à minha custa) não se faz só com memórias, embora
continue sem saber muito bem como ela se faz; foi algo que o Reis nunca
pôde ensinar-nos, ele que, no entanto, nos ensinou, nesses dias
misteriosos da juventude, coisas primárias e quotidianas sobre nós
próprios e sobre a nossa juventude que poucos poetas do mundo (eu é que
sei!) nos poderiam, como ele fez, ensinar.
Nunca mais o vi, até poucos dias antes da sua morte, no dia dos 50
anos do Chico. Receei então, quando dei subitamente com ele ao fundo da
sala, que não me reconhecesse. Tantas coisas se tinham passado
entretanto, tantas coisas mudado! Mas ele abraçou-me com tal força que
soube então, comovidamente, com todo o meu corpo, que, afinal, algo
essencial não mudara. E o meu coração rejubilou como se eu fosse jovem
outra vez, e apertei-o também com quanta força tinha. Não com tanta
força porém, hoje que sei que me despedia dele para sempre, como
quereria ter podido então fazê-lo. Mas essas são coisas, indecifráveis e
invioláveis, que estão para além da memória e das imagens, um
património fundo e secreto que nenhumas palavras me poderão roubar e que
nos pertence só aos dois, a mim e ao Reis."
- Manuel António Pina
in A Grande Ilusão, n.º 13/14 (Out. 91 a Mai. 92), pág. 4-5, Edições Afrontamento, Porto, 1992
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