terça-feira, março 16, 2010

A carestia outonal levou-nos para a beira-rio
até uma cerveja sossegada. O bar
de pequena moral e pior comércio
cobria-nos com a sombra do repouso
e da música furtiva. Os fósforos acesos,
os cigarros gastos, as mãos abandonadas
na frescura da mesa, os risos traziam
a usual selva das mentiras.

«O bonzozinho da crítica anda a fingir que tem
a tua D. Augusta por mulher a dias.» Senti a li
teratura agitar-me a circulação.
«Inventa por ela o que não queres
e rebola-se a biografar à revelia.»

Os teóricos franceses e o dinheirame
dos congressos e das mesas-redondas
estrugem-lhe o mundano das ideias. E depois
da pose já sabida da permissão bem pensante
julga que mulheres e D. Augusta são a dias
com a sagesse das províncias mal traduzidas.

Uma gargalhada entre a freguesia dúbia
trouxe, e ao meu amigo, a súcia dos tótens culturais
ao escárnio do esquecimento. E bebemos
e falámos de coisas felizes e saímos
para a perversa carícia dos passeios.

- Joaquim Manuel Magalhães
in Alguns livros reunidos, Contexto

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