domingo, fevereiro 10, 2008

Vivemos as mais das vezes à luz de fósforos, gás propano
lumes brandos, a controlada combustão destas horas enceradas
e os pontos de luminosa artificialidade
que arrastam as sombras para baixo dos tapetes
e permitem a vida interior da casa abastecida
de todos os males de consumo, víveres
e o extenso rol de ansióliticos e seus derivados. Eu inspiro
maços e maços de imaginários cigarros e largo sinais de fumo
em derivas transatlânticas, faço
decalques com papel vegetal
de coisas que se agarram à memória
decoro indicações rodoviárias, as saídas
e entradas por onde se acede à marginal
seguro o volante com firmeza e sigo devagar
enquanto lanço a consciência
sobre a lenta coerção do pluridioma do mar.

Divirto sensações, aprendo um novo caminho
e os indícios de um corpo de mulher, fios negros
cabelos perdidos, o prenúncio do toque
a fome da areia contra a tua pele, esse lugar de névoa que me deixas
e um olhar azul navegável com muitos corpos estragados
a darem à costa
depois de naufrágios e suicídios por afogamento, tantos
danos colaterais de paixões incendiadas em alto-mar.

Embalo numa canção as três sílabas
desse nome que antes de fazer sentido na minha boca
parece encerrar um ventre para esperanças
embriões literários e outras formas de sonho.
Na maresia labial agita-se um navio
que rompe as nossas discrições ortográficas
e carrega no mastro duas tensas bandeiras
as rotinas de dois países distantes
com o apelo salgado pelo meio, o mesmo horizonte sensual
e o vigor das velas por onde o vento nos incita
a retraçar os limites que estendem a nossa caça
ao dorso branco da imperecível baleia
com o corpo marcado pelos arpões de todos os que
antes de nós, falharam.

Chama-me Ismael, aqui estou e agarro-me à mesa
como se me agarrasse a ti. Em meu redor tudo é madeira
e toda esta madeira se queixa da sua secura
da sua falta de mar. Eu mesmo sou talhado em madeira
e do meu febril peito irrompe um diligente cuco
para me cantar a morte de cada hora que desperdiçamos.

1 comentário:

Artur Corvelo disse...

o melhor poema que habita (n)este blogue