terça-feira, setembro 17, 2024


Entre o barulho acha-se hoje uma epopeia
nos ruídos que se perseguem, entre as frases
abertas como navalhas, ou neste copo 
que me deixa nos lábios o gosto
de um sonho que não era para mim
e dele guardo o rasto de um corpo estranho
um apetite por aquela que nem morta,
vive-se abalado pelo impossível,
deitando as mãos remexendo nos ciclos
e um dia aprendemos que o futuro
é tão antigo como o passado,
mas se ao menos eu soubesse sempre
o que sei agora, se me fosse oferecida
a oportunidade de um crime voraz
não diria outra palavra,
morre-se demasiado na imaginação
cada vez menos a meio no vinco da vida
nos extremos do mal ansiando o novo perfume 
e então que pressa de sacudir o cadáver 
ameaçar cada uma das pulgas
levar a sarna a outros fins
fazer nascer na própria carne o verme
que ri e aumenta a fome e o escuro
tudo aquilo que te rói para lá da vida
o gozo de ir ao lago pé ante pé 
e estrangular o cisne, o próprio canto 
lançar esses reflexos procurando outra forma
na superfície da água 
falamos e as palavras fazem-nos ver
e ter claro como tudo isto será esquecido 
roubar é por isso o verdadeiro gesto
entre todos o mais doce e misericordioso 
guardando horas perdidas, dando-lhes
continuação, outras vistas
flores voltadas para sóis destruídos
e como estas nos apresentam a luz,
o calor de tudo o que se acabou,
as crianças que chegaram à fala
imitando os pássaros,
apanhando os próprios ecos
para os levar a outro fundo
desenvolvendo cores amargas, a razão 
de tudo quanto treme, como eu ou ele
diante da nudez dela
dos gestos repetidos pelo espelho,
os dois juntos encantados vimos
como acalmavam o tempo


segunda-feira, setembro 16, 2024


Com isto nunca quis gravar porra nenhuma,
mas mexer com os materiais da invenção,
batia as letras como quem pega e compara
os tipos, monta cada frase e passa tinta
num ritual para vir esperar algum ritmo
que se impusesse como uma debandada
uma ordem fabulosa erguendo nuvens de pó,
mas cedo dei com os notários os enredos
memoriosos relativos à posse, aos títulos
e percebi como por um receio qualquer
quiseram tornar as lendas imperecíveis
servindo-se da tinta, uns ditando outros
transcrevendo, fazendo cópias truncando
não tanto o sentido como a sonoridade
e às tantas os astros ficaram mudos,
deixando de exercer a sua rigorosa fluência, 
o ritmo sofreu, e o ímpeto, claro, em breve
as imagens achavam-se desencontradas,
os sons vagavam incapazes de se reunir
às coisas, os nomes pareciam cascas,
restava perder-se no silêncio levando só 
um texto para se misturar a ele, sangue
com tinta, reescrevê-lo, rasgar as folhas
meter os bocados na boca e recuperar
enfim tudo sem vontade de estragar nada,
tornar-se analfabeto enfim sabendo-o
de cor, e perder a relação entre os sons
e os signos, mas murmurá-lo para se
adormecer, do mesmo modo como a casa
responde ao vento, e a esse assédio senil,
e se a tempestade aqui é leitura suficiente 
o candeeiro recita de memória 
aquilo que nos foi dito pelos mais velhos,
e eu lembro-me que adorava não perceber 
metade, coser os pedaços que apanhava 
bem vivos no ar, aquelas conversas parecendo
eternizar-se na ânsia de captar algum detalhe 
quanto à natureza do próximo mundo…
Por agora a madrugada ainda assinala
um território sagrado, e nós caminhamos 
encostados à pulsação, atentos a ínfimos 
movimentos no escuro, a corpos
que nos deixaram o ritmo a que respiravam,
respeitando a lua e o seu luto, vagueando 
junto a ela e na companhia dos lobos,
já a mim sempre que a olho dá-me
a impressão de que deve tresandar a álcool, 
acho-a triste, afinal só temos esta ronda
tão larga, mas tão dependente de outro corpo,
e recito-lhe coisas, peço-lhe a opinião,
invento diálogos, apostas, desafios:
basta que chova e já me sirvo disso e juro
bater à porta daquela de quem ainda
vou escrevendo o nome, isto se a lua
e o vento me derem cinco minutos,
um intervalo claro, perfeito
de modo a que se torne indelicado dizer
que não, estando ali eu, de noite e à chuva,
implorando que abra e me convide a entrar.


segunda-feira, setembro 09, 2024


As estações já não aguentam qualquer
efeito de composição, nenhum vaso
contém seja o que for, não se conhece já 
ninguém pelas coisas que diz,
talvez tu que ainda foste uma mulher
quando nenhum de nós presumia saber
o que isso significa, a insolência
a candura, os sinais distribuídos pelos dias
e sobre a pele, trazíamos e levávamos coisas
do museu das nossas memórias
para fazer sentido do que ia sucedendo,
andávamos por ali entre as estátuas
de feições corroídas e das quais podíamos 
colher nos dedos a saliva dos séculos,
tinhas a tua pequena e confiante voz
de quem canta entre o quarto, o chuveiro,
o corredor, essa existência nua,
tinhas o teu poço as rezas oferecidas
as conversas ao telefone a más horas
as acusações dirigidas a deuses de nada,
a tua preocupação em fechar a torneira 
do gás na cozinha, como se imaginasses
que a morte pudesse visitar-te
por um descuido desses, cuidados inúteis 
que te tornam compreensiva, próxima até 
daquela mítica letargia dos rapazes,
também a mim a única moral
que me importa é o tempo, ter bem claro
a todo o momento que já tudo aconteceu
e que só resta escolher o ângulo, como as aves 
que emigram de uma terra para outra,
porque o elemento em que se movem
é o mesmo que respiram, por isso largam
em bando, não ficam para assistir
à desolação, tornam-se um primeiro sinal,
e eu gostava de falar o que elas falam,
uma linguagem que fosse em si mesma
um alimento, um presságio, sons vivos
que com a sua mera propagação 
já nos dizem se o ar se tornou amargo,
ter um nome em si mesmo difícil
como um gole que lhes encha a boca
e os obrigue a cuspi-lo, com um gosto
a maldição ou ao menos a veneno.


segunda-feira, agosto 19, 2024


A memória de um violino chega a ser
o mais importante, a escavação
que foi necessária para lhe arrancar
aquele som, para restituir
cada um dos ossos
a uma composição imaginária.
E se a perfeição é odiosa, não muito
longe, colhe-se um defeito admirável,
aquela sublimidade que buscavam
os exploradores polares transformando-se
em manchas nessas distâncias que ainda 
falam entre si, onde se ouve o eterno
girar do universo e a sua eterna morte
ecoar na frágil carne dos homens,
o mesmo pulso que ouves com as mãos
sobre as gigantescas pedras de cantaria,
a escala dolorosa do que nos cerca,
dos mitos, daquilo que já não parece
feito para nós. Alguns meses sem falar
e regressa o prazer de isolar as palavras,
de sentir o caule destas roçar num frasco,
como a tentação de dar cabo do estilo, 
traduzir apenas esse resto de sol
que fica nos ossos, e a luz dos lugares
onde o mundo não existe, onde te achas
entre corpos que já não se importam,
que abandonaram as histórias
e que o aguentam simplesmente. Vens
a um sítio destes e vês-te prisioneiro 
de um rosto obsessivo, da sua mania
de olhar, da insistência sem uma palavra
a que te agarrares. E nem isto, nada.


quarta-feira, agosto 14, 2024


Prefiro os escombros
e também o vento que entre eles
soube aprender línguas,
cobrir as maiores distâncias,
nesse tempo falávamos mais
e o mundo parecia tremer aberto à ênfase
ao embalo que levava a frase,
através da infância chegava-se a todo o lado,
mas hoje é difícil,
aquilo que importa resiste sem ser visto,
e dependendo da hora
se forem suficientes os que dormem
ainda se pode escutar a canção dos bosques,
se cresceste do lado da impaciência 
és derrubado todas as tardes
pela inclinação e os contornos que assume a luz,
persiste um rumor por aqui que atrai os navios,
os homens pedem um pouco de água doce,
e o ar ganha outro peso,
é teu vizinho esse pobre e velho homem
cego, cego como um morcego
e que leva o seu murmúrio à frente
alimentando-se como Homero
das vozes, dos ecos mais antigos
e que se acham tão vivos como dantes
pois comovem igualmente esta terra,
afinal somos ainda os mesmos,
e a ti toda essa proximidade
tem-te cada vez mais atento;
escuta, força o inferno
a sair da mais branda matéria,
vai buscá-lo e à beleza onde tiver de ser,
e quando for hora de regressar aos navios
entre as vozes gregas estará a tua.


terça-feira, julho 30, 2024


E que importam todos estes trabalhos,
afinal de que nos serve um tão grande apego,
fazes sequer a menor ideia
do que pode seguir-se?
Por alguma razão aos condenados
interessa tão pouco falar no futuro.
Quem chega ao mundo deve libertar-se
de tanta tralha, e só então lhe tocará
um desejo enfim renovado de pôr os pés na terra
depois de uma tão grande fadiga nos museus.
Contamos os degraus enquanto a luz
ganha as suas antigas propriedades,
e é possível perceber como a vida
lhe responde,
como isso te deixa imóvel a assistir
enquanto tudo à volta se transforma,
nesse modo que há de arder
encostado a ouvir a canção e o tumulto
dos mundos que houve,
e alguém terá de apagar-te o corpo com as mãos
até dele restarem apenas cinzas, alguém
que te desperte do embalo e abandono
a uma tão melodiosa gravidade.
Haveremos de falar mais tarde,
reaver a sequência olhando os frascos
de compota cheios de pirilampos
apanhados lá atrás dançando em honra
de uma era há muito extinta,
passaremos um bocado os dois 
a ferver num pote umas ervas
e o próprio nada, que perfume!,
todo esse alimento para oferecermos
às distâncias, reanimando-as.
Agora que a morte começará por fim
a soar-te como deve, como uma piada
com toda a sua redundância, ela mesma
exprime a única tarefa ao nosso alcance: 
trazer um pouco de ordem
entre a devastação, colher no lixo
as semelhanças, a ruína enternecida
e os seus delírios. Basta ter o sentido
e mesmo entre o pó nos será possível 
beber a tonalidade das coisas,
deixando que as antigas vozes
de novo façam vir à superfície 
aquela jubilosa frase infindável.


segunda-feira, julho 22, 2024


Procurado por algum crime que hoje 
já esqueceu, desviou-se da rota, viu
coisas que não esperava da carne
e foi tomado de outra obsessão,
buscando algum fragmento perdido
do relato que impôs esse intervalo
entre a sua vida e ele, interrogando
tudo na varanda entre cigarros, plágios,
como tantos nessa idade incerta
bebemos cerveja, olhamos o mar
imaginando que mais poderá seguir-se,
trocam chistes e lendas estes que ainda
se mostram capazes de alguma ênfase,
descascando a realidade como uma peça
de fruta, deixam-na pelos quartos, 
onde passaram temporadas do avesso
os astros beliscando-os no sono,
entre visões recortadas por outra luz
sob o efeito da qual recolhem
a sua forma mais lúcida. Mais tarde
o sangue há-de perder o gosto pelo mundo, 
mas por agora a noite estende-se sem
acatar limites ou proibições, cada nome
suporta um certo desgaste e ilumina
esta época em que os verbos se conjugam
no plural. O navio aos poucos deixa-se
consumir, a água sob a quilha, a onda
corroendo a popa, da proa esteiras
correndo, onde era a amurada, agora
há videiras, e trepadeiras onde era
o cordame, também as sombras acabam
por consumir-nos o reflexo, o ar sem vida
vai ganhando nervos, e o som que então
nos acerta como um harpão até estes
hábitos próprios de quem se habitua
ao cativeiro, e da vinha que tomou conta
dos remos colhe as uvas com que alimenta
os seus leopardos, entregando-se ao felino
lazer enquanto dispõe sobre o soalho
as antigas escamas, e se despede de vez
do azul profundo que teve ao seu redor.


quarta-feira, julho 10, 2024


Os nossos rostos surgem nos mais frágeis 
reflexos, como eles os recortam
não fazendo ideia com o que nos parecemos
e se jogámos tudo como danados
não poderiam saber que fomos
a descoberta feita uns
pelos outros, desmentidos tocados
de um modo que nem sonham
se sequer sabem como se diz
a luz que sobrevive sem se deixar prender,
e se queremos falar-lhes mais fácil
se torna fazer-lhes a guerra
quando nada dariam por esse antigo encanto
de ver passar, como a alma se cala
chegados àquela velha
doce indiferença, do outro lado
desses miúdos que ouvimos ainda
falar sempre de outros lugares
com um cuidado terrível
um modo inclinado de se dirigirem às coisas,
roubando os gregos e o vento
vindo de longe,
cada noite enchemos um copo
entre os restos desse enorme navio
que se negou e assim cumpriu
a mais estranha viagem,
uma que outra onda ainda
nos revira sacode
e o mar obriga-nos
a beber esse gole glacial
enquanto juntos levantamos a rede
num mudo entendimento diante
da vida e desse sol macio
que mal nos chega agora
no esforço de ler a última linha.


segunda-feira, julho 08, 2024


É tão pouco o tempo que temos
talvez por isso saiba a grogue,
a bebida dos condenados,
levamos um gole o mais longe que podemos,
imaginando como seria bom provar ainda
alguma outra coisa, um travo
que abalasse a existência, de tal modo
que a memória nos servisse de alimento 
como uma eternidade dilatando
os poucos dias que nos restam,
poder despedir-se sentindo a realidade 
coincidir uma última vez consigo mesma,
as árvores a respiração a gravidade
uma banheira cheia de água das chuvas
esses sítios assombrados onde os anjos
deixam as suas garatujas nas paredes
e se drogam e depois se desfazem em pó,
nada sabe melhor que esses adeuses
retendo o nome das coisas pouco antes
deste perder o sentido na nossa boca,
de tantos gritos que se engole
ao longo de uma vida
tudo parece alheado, e então 
às vezes olhas para cima e o céu nocturno 
deixa-te a sensação de que todo esse brilho
toda essa dispersão talvez seja
uma lembrança, os miolos espalhados
de um deus que se suicidou,
toda essa luz capturada, esses ecos
sem saída, e de algum modo é possível
que seja este o efeito pretendido
olhar o mundo e a própria infância 
como uma civilização perdida,
e que talvez só por isso nos cause
uma tão grande comoção.



sábado, julho 06, 2024


Os amantes apodrecem como fruta
mordidos abertos desfeitos uns pelos outros 
por insectos pelo sol, em quartos suspensos 
ao lado de igrejas entaipadas,
deixando nos muros esses hieróglifos 
próprios de seres que tresandam
a uma vida secreta, recordam-nos assim
como a beleza foi um susto, agora
que antigas idades nos rechaçam e também 
como mesmo o olhar é um gesto da carne,
como alguém se lança e pela atenção 
se vê mudado, um gole, um de muitos 
e assim prova a medida e o gosto de outro,
e por isso tantas mulheres acabaram
por desfazer-se do enredo traindo a paixão
afinando gestos frios, oferecendo o corpo
sem especial vontade, para que outra 
música viesse, escapavam-se
dizendo mal o próprio nome,
cobrando um preço, aleatório às vezes
e as que se atrevem sabem o exacto peso
de um sorriso, de um olhar que se detém 
quebrando a paz, dessas variações
e tumultos, que um convite, um gesto basta
para que a tensão extrema da corda
a faça cantar ou romper com a vida anterior, 
uma carta e lá vai algum miúdo com ânsia
de perder-se por “caminhos de sirga
invadidos pela sarça e pela hortelã”.
Com essa letra que se ri nas bainhas
da História, o desejo vinca a sua geografia,
esses signos, imagens nocturnas,
tudo o que ganha radiância mal
nos afastamos do idioma,
quando somos absorvidos pela trama
de quem nos tocou um par de vezes
e com isso recompôs para sempre
o perfume do que perseguimos mal
cerramos os olhos.


quinta-feira, julho 04, 2024


A luz não nos obedece, 
talvez fique pelo beicinho duas
ou três vezes a cada década, mas
tem gostos estranhos
algum pintor atraindo-a com gomos de fruta,
tu e os teus álbuns, os restos do filme
a fotografia que me tiraste noutra vida,
esse animal gigantesco que eu fui
e que já deixou de se mexer,
a sua altura oferece-nos a vista
o remorso e a leve trepidação de certas
lembranças, 
ilustra qualquer coisa, 
como a fome nos desfaz, eu sigo
o teu olhar, tenho ciúmes de todos
os homens, sobretudo os que não são 
de cá, e só estão de passagem
tenho a sensação de ter escondida
uma arma, não sei
fico a ver a tua roupa a dançar
a dar voltas na corda ou a ir
e vir sobre as ondas, 
Abro as gavetas mexo nas tuas coisas
atravessada por um alfinete a borboleta 
ainda bate as asas, e o metal
parece arder, a ferrugem tu tens épocas
desconjuntadas aqui, talheres e jóias 
a casa está suja há fadas e baratas
por toda a parte, 
fazes-me falar sem ser claro onde vamos
esta pequena loira nunca me fez perguntas,
desenho-a na parede ao lado da cama
em cada quarto por onde passo,
aí onde se desenrolam as estações,
onde um estilhaço vivo do acaso
atinge a carne que me resta,
os ecos encontram-se, o ouvido
inventa os caminhos que faltam, 
a antiguidade da água,
a fonte perdida onde tenho bebido
o meu reflexo, prometeram-me
que o vinho acabaria por me matar
e agora às horas das visitas vêm ver-me
mas não me falam de ti, escreve-me
diz-me o que tens feito da luz,
aqui todos mastigam tão devagar
ninguém nos serve um copo, o tempo
não passa, é preciso empurrá-lo
com a ajuda dos comprimidos.


domingo, junho 30, 2024

Luís França e a edição literária entre folhos e fólios




 

Por cá temos muito disto, estas aias pavorosas, presunçosas, que trazem a literatura pelo beiço, e se lançam neste género de empreitadas sempre a armar ao pingarelho: capas duras, edições de luxo, tal é o ânimo de passar graxa na coisa, sempre a congeminar algum berloque, traficando nitratos celestes, merdices arrebicadas... Uns bigodaças, que o maior prazer que tiram da vida é revirar as pontas com ar de entendidos, e que atravessam a maior balbúrdia, gesticulando, dizendo-se tomados daquilo, mas só revelam um gosto imoderado pelos efeitos pastel, uns azuis parvos, uns relevos desnecessários, querem fingir um braille não propriamente para cegos, mais para esses que vivem de apalpar edições opulentas. Catam-se uns aos outros em busca do piolho que brilhe feito pepita de oiro, tontos militares dementes nessa adesão aos elementos postiços, vemo-los sempre encavalitados, recitando uns para os outros e para si mesmos esse desfiado louvor de tantas ondas, sempre com os seus acentos circunflexos retirados do cu, e aquela boquinha em ô-ô-ô... Olha-mesta maravilha qu'eu aqui trago... e desembrulham o pano para expôr uma buceta ressecada, mas preciosamente encadernada. E que se faz com aquilo? Nada, é um objecto mais de colecção, mais para emoldurar, para exibir às visitas, para pegar e virar as folhas usando luvas, quase sem respirar. E se há sempre uns curadores da sua própria cagança, uns que têm com a arte esse trato de bicharoco de museu e se deliciam com essas cabeleiras à luís xiv, aquele feltrozinho em redor do punho, depois espantam-se que quem gosta dos livros para escarafunchar, como uma ferida que se abre entre si e o outro, se marimbe para estes enredos empenados, estes modos caprichosos de vir para a literatura gargarejar alegremente os escarros que outros foram soltando de desprezo por gente assim. Aqui vemos esta resmungona mocinha bater pela milésima vez com a porta do salão de baile que lhe ocupa inteiramente o juízo, ela que esperava já ter sido coroada, vemo-la nuns dramas de casa de banho de liceu sempre a mudar de roupa murcha e a enfiar mais outro vestido de tule antes de voltar lá para dentro, para quinze minutos depois estar cá fora outra vez, reclamando que nunca foi beijada. Faz-se de fina, exibindo os primeiros calores, anseia por molhar o corpinho, mas não se quer misturar com as outras, as putas reles, como nos chama, as de estrada, as que o fazem barato, só pelo gozo, e vem-nos com estes truquezitos de perspectiva, desta feita traz o braço erguido e finge que se confessa ao Jarry, impõe-lhe uma série de remendos e grinaldas, as letrinhas debruadas, a talha dourada caindo naquela feiosa água verde e cinzenta, e com aquele sorriso de sopeira e indignação de princesa exige que algum crítico de nomeada (ou nem isso) a despose. Veja-se como a luisinha, com o afrancesado requinte do sobrenome, se acha no direito de vir reclamar dos críticos que não lhe pagam os sumptuários trapos, se atira a este ou àquele que não está para dar o preço de três refeições, ou quatro, pelo livro que ela mandou confeccionar segundo a linha que dizem ser o último grito, esses monos histéricos clamando por um céu que nos rebaixa como leitores a esses ataramelados modos... Quer atenção e faz destes escritores que nos poderiam dizer mais o seu modo de chantagem, mas em vez de nos passar as sementes para as crescermos nós como pudermos, nos nossos canteiros ou até na banheira, no penico, quer impingi-los metidos nestes requintados vasos para promover a oficina de lontras local, que espera fazer vingar o regime de olaria decorativa, as suas loiças torcendo a vista alegre em vista taciturna, limitando-se a encher de enfeites os lautréamont, os rabelais e mais uns que se juntam e, como daquilo só lhes fica a ideia de ruído, trazem os tachos e uns pobres duns instrumentos musicais a que deitam a unha e desfilam o seu barulho incapaz de deixar qualquer rastro, a menor inflexão ou arrepio, fazem barulho porque é essa a única resposta que lhes chega da imaginação, uma vez que neles esta se reduziu a isto: fazerem-se carraças dos cemitérios literários para depois virem exigir que os críticos digam alguma coisa dos seus vestidinhos cheios de folhos. Não, Luís França, não te pagamos para fazeres desta febre héctica outro modo de andar aí a lamber o próprio reflexo nas montras.

 

terça-feira, junho 25, 2024


Ok,
e como esperas fazer sentido disto?,
talvez, se te disser como ando, onde,
outro paraíso de postal, mas a noite dói 
como em qualquer espelunca, 
as vistas dão-nos cabo da paciência,
a agitação e a música cada vez mais gratuita,
aqueles que parecem suspensos por fios
dançam sem qualquer temor,
nunca se despenharam, nem desconfiam
dessa fúria que escava em nós um vício,
recuados, ao fundo, toda essa infantaria 
desmobilizada, homens desfeitos
a segurar um copo com um grande esforço 
para não ruírem de vez, um pequeno quadro
na parede mostra um dorso branco
à superfície de águas tão sujas,
não parece haver nenhum lugar
para onde ir, nenhuma viagem
que pudesse mudar o estado das coisas,
até a beleza se tornou inconveniente,
assediando todos esses que não têm
nada melhor para fazer, fatalmente
chega esta idade em que os olhos
apenas exprimem o desejo de desertar,
fugir à primeira, se aqueles que dizem
que te amam não tiverem à mão 
pregos suficientes, se a culpa e o remorso
não fizerem a sua parte, em menos de nada
lá vais tu de mãos nos bolsos à boleia
de um assobio, convencido como dantes
que as tardes e as estradas ainda fazem
o que sempre fizeram, quem dera
se alguma buzina soasse a convocar-nos,
e houvessem rostos que nos buscam,
aquele sinal de reconhecimento,
estávamos radiantes por nos verem
como uns inúteis, e que paciência incrível 
tínhamos então para os disparates uns
dos outros, os delírios, todos esses sonhos
que iriam dar cabo deste mundo.


segunda-feira, junho 24, 2024

Um espaço empenhado na conquista de posições do lado da crítica literária

 


Relatório da Noite: https://relatorio-noite.blogspot.com/

Alguns exemplos

Sobre Elisabete Marques: https://relatorio-noite.blogspot.com/2024/06/os-dedos-em-redor-do-lume-passagens-de.html

Sobre João Miguel Fernandes Jorge: https://relatorio-noite.blogspot.com/2024/06/joao-miguel-fernandes-jorge-todo-o.html

Sobre Luís Filipe Parrado: https://relatorio-noite.blogspot.com/2023/11/luis-filipe-parrado-uma-questao-de.html

Sobre Cormac McCarthy: https://relatorio-noite.blogspot.com/2023/09/cormac-mccarthy-o-trabalho-de-fazer.html



Devo ter batido já um deserto inteiro
à máquina, cada grão uma sílaba, 
e não vejo o fim disto, 
nenhum eco me trouxe o que buscava,
e hoje seria uma ofensa se um
o tentasse. Tenho quase quarenta 
e os pulmões cheios de musgo.
Quem nos lê, vê-nos por aí entregues
aos restos mortais do impossível
a minoria de que fazemos parte, tu e eu,
uns poucos mais, esforçando o ritmo
para atingir o âmago, tentando fazer saltar
o reverso da vida. Mas para quê?
Seguimos para o funeral de outro de nós,
alguém que puxou a sua rede um pouco
mais cedo. Agora o gato dele terá de ficar
uns dias em tua casa, mas descansa
está habituado a tudo isso, ele mesmo
se serve, habituado que está a perseguir
caça grossa, é discreto, gosta de riscar
equações nos muros e de dividir
a realidade com os pássaros,
aprecia também como te demoras
a lavar a loiça, os pratos alinhados,
esse sentido de ordem que antes levava 
alguns a viver de roda de um soneto.
Ficará de olho em ti na varanda,
enquanto acendes o cigarro e o deixas
nos lábios do tempo, ardendo a sós,
e há-de apreciar a tua colecção de garrafas 
com as suas diferentes medidas
de água da chuva, e essa vista sobre os telhados,
esses vasos com um pouco de terra e mais nada,
a pedra que parece fria e afinal sabe
desses ardores que sobrevivem à carne,
e recorda traços, gestos vivos, perfis intactos
após três mil anos, o mesmo terror
diante dessa esquiva graça, e se uns
se desgraçam perseguindo formas,
outros perderam o juízo entre murmúrios, 
e parecem alimentar-se de sons,
devorando as intimidades do idioma.
Talvez isto possa ser o suficiente.


terça-feira, junho 18, 2024


Neste ínfimo país apenas reconheces
as distâncias implacáveis,
os corpos e o cansaço,
a estranheza que se entranha
até só o escuro poder transmitir-nos
alguma calma.
Gostaríamos de esquecê-lo e por isso
tantos fizemos da noite um hábito imperioso.
Serve-te do isqueiro para ir soletrando
provando o espaço como quem bebe
goles de chá, cerveja se preferires,
sê indelicado, se te apetecer, 
no fim, a realidade mostra o seu nojo
por aquilo que dizemos.
Antes tínhamos o perdão dos substantivos,
a textura e o tumulto de impressões raras, 
nomes intrusos, e a resina
de umas poucas imagens, o balanço
das ondas a voz trabalhada pelo sal.
Hoje raspamos o que de um anjo sobrou
para a canção, essa ferrugem
de uma espécie aguardando algo mais
de outra, e logo damos pela falta
do mundo,
ainda que o não soubéssemos explicar
nem vender a estranhos.
A dor ensina a encher um copo de cada vez
e a bebê-lo como quem toca um instrumento,
e depois tombas melodioso por aí.
É difícil segurar-se e persistir
tão à flor de nervos desarmados,
saber de si nesta língua de farrapos,
a rebentar de ecos, roncos, entre tantos 
remoinhos, regressos a outras idades,
as misturas, e os estragos que isso faz num homem,
a consciência zunindo com um gosto
a tempestade,
e mesmo desconfiando da própria respiração,
vemos o que nos resta com toda a força,
as evidências extraordinárias do que se abate
contra nós,
e se escrevemos é na ânsia
de dar ordens ao tempo,
humedecer-lhe os lábios, deslizar
entre essas formas leves esse modo
de evadir-se, que deixa aos versos
aquele tremor das grandes migrações.


domingo, junho 16, 2024


A garrafa roda para cá e para lá 
como se estivéssemos no mar, e diz-me
que ainda temos tempo, não tirei nada
das paredes, o primeiro dia ainda se ouve 
daqui, eu gosto de o ter à minha volta…
Trazes uns girassóis para dentro,
e se estes podem ter achado deplorável
o quarto, ajudam a compô-lo,
emprestam-lhe uma graça desvairada
e duram quase até ao verão seguinte
antes de morrerem, e mesmo então
riem-se desgraçadamente 
deixam-nos esse rasto ainda vivo.
Como seres queimados pela espera,
ensinaram-me a importância do calor,
de um detalhe, o teu gancho no lavatório
a torneira pingando num ritmo
que acabou por se tornar hereditário,
estes hábitos a que me agarro
sempre que regresso à superfície.
Se antes sabia desenhar, não perdi tudo
e a obsessão hoje são os peixes,
reflexos à tona de águas pouco profundas,
e ainda temos o sol, que se mete em tudo,
seca-nos o verso tão cedo que este
acaba por soar precipitado, outras vezes
agarra-nos, atravessa-nos
sacode-nos se somos frívolos, falsos,
não se impressiona com quase nada
ainda que não se canse de ver os miúdos 
quando fodem, fazendo-se de tudo, 
aquilo sim, diz ele, as coisas que se fazem
sem necessidade de mostrar, é quase
tudo o que resta, a única coisa que importa.