quinta-feira, setembro 18, 2025

 

és o último 
da tua geração a apagar o sol
e a transformar-se em pó
Enrique Lihn


Passaram horas, o chá ficou amargo
mas continua quente. Queima os lábios,
e é impossível bebê-lo por agora.
Nas gavetas acumula-se a poeira
de outros mundos, as línguas parecem
misturar-se, é difícil terminar a frase
que se começou. A voz sabe-nos mal.
Tudo vem sempre da noite,
ouvem-se comboios impossíveis 
que passam apenas para provocar o seu abalo
rasando as janelas a pele os dedos
entre as duas e as quatro da madrugada.
Que estranhos somos para nós próprios
e estes corpos mal servem de medida.
As sombras de outros tempos cruzam-se
aqui, vês alguma memória encurralada pela luz
como os anúncios que mancham as noites,
recortando no tecto vultos delicados.
As horas parecem confusas, tens a manhã 
ali, a vantagem da janela e de alguns metros
de altura, esses pequenos meridianos,
usas a meia dela para filtrar o café,
já saíste, voltaste com o jornal, ou o livro
de ontem, revês os cantos dobrados,
quem leu isto, sublinhou aquilo,
é difícil ter a certeza, quebras um ramo,
espalhas esses amuletos do fim.
Por momentos parece que o absoluto
não terá mais como negar-se,
se a terra debaixo deste alento me desse
um impulso, mas ponho-me a mexer
nuns papéis, cheiro esses reflexos ósseos 
que a lua nos deixou pelo quarto,
oiço o que dissemos a meio da noite
ao desistirmos do sono, os dois feitos
monstros de murmuração. As luzes indirectas,
paisagens reabsorvidas pelo som,
jardins de raízes gregas onde enterrámos
as mãos a orelha esquerda restos
de amantes, caminhos afogados.
O rádio toca, acordas-me eu
puxo-te o lençol a luz, e com a manhã 
um pouco de cólera, alguma lepra e café
saímos com a roupa húmida
como é próprio dos afogados,
esta dificuldade em levantar o rosto
ver algo mais do que aquilo que
já foi dito. Sento-me e procuro uma nota,
flor que fira o ar, e parto pedra, lapido,
aspiro para dentro dos pulmões o pó
do mármore, mas a última frase surge
arrasada pelo vento, o som do mundo
parece ter ficado debaixo de água.

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