Para voltarmos vivos virgens a certos
lugares faz-nos falta outro rosto, um
desses familiares, suaves, que não insistem
no quanto hoje somos ilegais, desolados,
rudes uns para os outros,
mas nunca chega a haver desordem
mal nos olhamos, só por delírio
nos parece que alguém cruza as linhas,
algum morto elogia uma jovem,
faz de um vestido amarelo um acontecimento,
e que inveja lhes temos, aos mortos.
Eles, que perderam toda a vergonha,
têm esse talento de quem raspou
até ao fundo a cova que lhes foi destinada,
regressando aos prazeres que nós
por fraqueza desdenhamos.
Só para os vermes os mortos
são todos iguais, diz Müller, e é evidente
como a respiração de alguns provoca
nas nossas vidas um estranho efeito…
Deste, o sangue deixa-nos na boca
um gosto impossível, faz-nos acreditar
na aventura de um sincero luto,
aquele acusa-nos de tudo, pela ausência
de vícios gozos perversões, transpiramos
e não se pode resistir à proximidade
a forma como rebenta e nos desfaz
em espuma cada pulsação deles,
esses corações que pararam de bater
deixaram de justificar-se, são mais audíveis
cavalgando todos os ecos, têm
uma avidez, aqueles gestos seguidos,
flagrantes, aquela alegria de estar diante
das belas coisas novas, aquela pressa
e como têm nomes sempre, os mais vivos
para aquilo que mais se esquiva, ah
essa gravidade que só conhecemos
de alguns seres quando já só lhes resta
uma frase, entre a poeira secular dos livros
um perfume indecente, o embalo e a sombra
que liga as passagens mais desconexas,
eis a religião dos canibais, a que força
e desenreda a memória, a música dessas
coincidências decisivas. Derrubam-nos
seduzem magoam, falam tão baixo e
não se perde nada, levam-nos a lugares
onde pode ainda exclamar-se
com terrível sinceridade: como a vida
é lenta, e a esperança violenta,
como são ainda perseguidos os encantos
absurdos, ainda que por poucos,
os que nos engolem na sua névoa instintiva,
nos grandes bosques, sem horários,
nesses precipícios antigos, sem placas,
só vertigem. Lugares como esse jardim marinho
onde também eu deixei os meus remos.
Alguém sorri, prefere jogar às cartas,
inventar posses, apostar tudo e exibir
enfim o pescoço, mas com uma tal disposição
de morrer, que mostra o sem sentido da coisa.
Homens esquecidos por certas mulheres
têm iluminações destas.
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