O caminho vai ficando estreito,
amanhecerá mais um punhado de vezes
e outras por favor, mas só resta uma substância
insegura, sem a menor intenção, e depois
o ocasional amanhecer marinho, largo,
e alguém talvez se esforce por traduzir
as memórias do vento, salvar um parafuso
do carrossel desfeito, a impressão de um
soluço mecânico. Assobiamos os caminhos
estas estradas, mesmo as borras tipográficas,
admiramos uns tantos que preferem viver sem
pontuação, espiando o acaso,
a melodiosa intriga de uma paisagem
suspensa, esses lugares onde a realidade
parece inacabada. Um dia perderemos
a relação com o tempo, às vezes eu
já gosto de lamber a faca ao fim de dias,
tantos usos, o gosto misturado e
esse jogo de lançar a imaginação
pelo penhasco, entre a névoa, ler só
estórias de fantasmas, pressentir como
só os desastres ainda têm ouvido
para o que busca o outro lado da vida.
Saímos a meio da noite, e temos horas
com gravações de insectos, frases
recortadas, sobrepostas,
o relevo nocturno, o burilar e o eco
das chuvas depois de terem cedido
as traves do céu. Gosto de ver esbater-se
na água a minha carne de lua e de orvalho.
Passamos horas diante de uma chávena,
como aranhas, a estender alguma teia
a inventar presas. Entretanto,
o nosso nome já nem parece funcionar
ou responder seja a quem for. Na rádio,
do que pude perceber vem aí outra,
estão a matar aves todas as semanas,
às centenas de milhares. Se não for isso,
será outra coisa. Estamos habituados.
O fim fez de todos nós detectives
implacáveis cronistas, habitantes da orla.
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