Vamos medindo a morte a cada verão
e mesmo se a luz já não nos diz respeito
tentamos recuperar uma província:
esta, antes que escureça de vez,
antes que o mundo perca aqueles traços,
esse rosto de que gostaste tanto…
Os pássaros pousam na flecha do catavento
que aponta a Sul, um céu baixo ferido
roça-se nos telhados, nas vigas
que sustentam a tarde, um sino arrulha
para não espantar o silêncio que ainda dorme,
cada um se defende com o olhar,
segurando a vida e a sua distância,
polindo a herança de uns quantos trejeitos
como esses primitivos que carregam
por toda a parte o maxilar inferior
dos seus mortos. Estamos gratos
sobretudo por esta tristeza,
a atenção aos frutos que não foram
colhidos e já só sabem a verme,
o regresso a Drummond e à epopeia
dos pobres diabos, essa distracção
que nos leva a olhar pelos outros
a apaixonar-se sem a menor vontade
de interrompê-la, de alimentar as ilusões
do costume. Colhemos uns detalhes,
inventamos outros, e podemos admitir
que gosta de trabalhar em hotéis
sobretudo nestes que já vão caindo
aos bocados, e que deve agradar-lhe
aquela arrastada presença anónima,
os gestos sem grande significado,
a sensação de viver pelos fundos.
A beleza podia complicar as coisas,
mas já não tem de se preocupar com isso,
muda a roupa de outra cama,
apanha um brinco, um corta-unhas,
escuta uma música abafada,
sempre que ouve as conversas
sente um cansaço enorme da vida.
Deve ser bom tomar café com ela,
deixar que os séculos apodreçam
sem tentar salvar qualquer essência.
Nem abrir a boca, não dizer mais nada.
Pois é certo que, no fim, são as coisas
que dissemos que um dia regressam
para dar cabo de nós.
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