segunda-feira, dezembro 30, 2024


A partir daqui não conta; é o cansaço 
acumulado e alguns reflexos que lhe fogem
e se põem a abusar da imaginação.
Já deves ter ouvido essas histórias,
coisas atrozes, delicadezas absurdas,
os ratos que somos em cima da carcaça 
dos antigos deuses, e disso
fica este rumor como vizinhança.
Que importa? Lemos versos como nas trincheiras 
se masca tabaco, para ocupar a boca,
roendo o vazio, quando ninguém sabe
que fazer com toda esta ausência.
O outro é que repetia: “Ninguém ampara
o cavaleiro do mundo delirante”...
Pois ocupamos as escadas, entre andares
sem subir nem descer, há meses
colhendo folhas, insectos, a fazer chá 
se chover, sem despirmos a velha
gabardine. Estamos tão juntos
e não é que sejamos iguais, talvez
nos falte a paciência e o orgulho
que faz inimigos.
Foram bons tempos esses,
prefiro recordar-nos como éramos então,
quando acreditávamos na guerra, 
na importância de tomar de assalto
uma colina, uma ponte... Agora
aqueles mesmos soldados reúnem-se
e já não sabem o que viram, que mundo
era aquele, e de roda de um piano
compõem uma música que nem é
para se ouvir, só para estar ali.
A estas horas detestáveis do dia
é tão difícil estar vivo,
os fantasmas mantêm-se bêbedos,
apesar de a noite não passar já
de uma miragem, uma lenda.
Os detectives dormem pouco,
maltratados pelos astros
reviram-se e dão por pistas ou migalhas na cama,
atravessam a cena de algum crime,
fazem-nos mil vezes as mesmas perguntas.
A culpa é nossa, diz alguém, foi isto
o que escolhemos, como grita o velho:
“se não amam o caos, não comem…
Só quem respira o alento da fera
tem o direito de descrevê-la,
erguendo o pó, misturando pétalas e escamas”.
Eu já gostei da vida. Mas agora,
a cada dia, pergunto-me: o que é isto?


Sem comentários: