quinta-feira, junho 15, 2023

Inteligência artificial

 


Seria só derivativo, cinzas arranjadas em forma de jardim. A alma é sentida como uma contracção fascinante e perdurável relacionando o que antes parecia disperso, é esse sobressalto do que inicialmente nos custa a engolir, mas que aos poucos começa a predispor-nos para um esforço cada vez mais paciente, na medida em que depois disto ou daquilo virá outra coisa, mais funda. E é essa coisa o que importa: o imprevisto. Há um encantamento que apenas resulta de um gosto que cresce das experiências que exigem mais de nós, um gosto ganho a custo, essa educação sentimental a que somos conduzidos tantas vezes a contragosto. Aquele que nunca conseguiu libertar-se do amargo de boca que fica de ter acordado muito longe do além, esse que o chegou a sentir num sonho como o perfume de uns cabelos, compõe, primeiro para si, o desastre dessa distância em forma de uma música tão dorida quanto alentadora, e que não nos deixa perder inteiramente a sensação ou a memória fragil desse vislumbre e nos faz levantar o rosto e perder o olhar por um bocado na direcção do outro mundo. A inteligência artificial apenas joga com probabilidades, preenche lacunas ligando pela via mais fácil, pela solução mais óbvia, o que está antes e o que vem a seguir. Já a alma é altamente improvável, ou pior, é mesmo uma ilusão, e por isso tem uma natureza que está para além da realidade. É a realidade trabalhada pelo desejo. E repara como as palavras certas podem fazer toda a diferença, como uma subtileza sintáctica introduz toda uma força de surpresa ou até de suspensão das leis que num determinado momento nos governam. As máquinas reduzem uma experiência a uma falsa compreensão sintética, a uma síntese desoladora, produzem um fantasma desajustado, que parece mimetizar os gestos, mas que o faz destituindo-os da pulsão que os governa e que determina a sua gravidade e alcance. Todo o gesto de uma máquina é frouxo, frio, é já a produção de reflexos mortos, de uma actividade imparável e desapaixonada. As máquinas dessa fantasmagoria espantosa só sabem o lençol que se usa por cima da cabeça, para gerar em quem olha esse reconhecimento mais imediato: olha, um fantasma! A inteligência artificial é uma produtora, numa escala exaustificante, de variações inócuas, de gestos infinitamente decompostos, que submergem toda a carga enfática desse gesto único e, por isso, decisivo. É essa ênfase que produz a assombração que dá vida ao vazio, coloca intenções no que está aí no lugar do nada. De resto, não basta escrever uma vez. A vantagem do homem está sobretudo nessa relação intuída e mais funda, que o faz trocar o que estava antes por uma visão que surgiu em consequência dessa. Estamos sempre a ler coisas escritas em cima de outras apagadas. Até começarmos a ler essas máquinas envergando lençóis. A diferença de um corpo, das experiências que emergem nele, resultando tantas vezes de tentações contraditórias, tudo isso se pressente, a ânsia biológica, a própria angústia por vezes dilacerante que em nós produz a passagem do tempo. E a decepção, o desamparo. A forma como estes cultivam em nós essa variação incalculável pelos sistemas algorítmicos que impõem o seu horizonte limitando o campo de acção a decorrências do já visto. Incapazes de experimentar todos os constrangimentos e o gozo absurdo de uma existência deleitosa mas condenada, as máquinas não sentem, apenas simulam. Só podem por isso promover ciclos de radiação cada vez mais limitados, à medida que as suas réplicas se afastam da origem. As máquinas alimentam-se da biologia, mas nunca serão capazes de se libertar dela. Não podem sentir, mas apenas esgotar todos os sentimentos que consigam registar. São processadores da mesmidade, e levam a cabo uma derrogação do acaso. Ora, o acaso actua em nos através do sentimento, e este é uma paciência infinita num ser mortal e que, por isso, se torna mortífero. Vê a diferença deste exemplo humano face a essa quadra cheia de cálculos de probabilidades:

"O mar dentro da árvore, as nuvens
dentro da terra sem fim,
a luz. A luz dentro doutra luz
que limitava as mãos e as abria
para outras mãos dentro de um olhar (...)"

Sem comentários: