quinta-feira, julho 21, 2022

Traficantes de sombras

 


Não faltam entre nós figuras de fraca constituição intelectual que se aferram a uma vaidade tosca e cultivam em si aqueles defeitos terríveis que tantas vezes se entende que vão a par com as qualidades estrondosas que destacam os grandes espíritos, e isto de tal modo que vamos dando amiúde por aí com tipos geralmente amorfos e invertebrados que fazem umas imitações macacas desses perfis duríssimos, atormentados, tentando pintar-se segundo o mau feitio e a rudez dos outros, mas que surge agora nestes como afectação teatral, uns exageros de maluquito a copiar à vista aquele desacordo tumultuoso entre certos homens e o mundo que os rodeia. Normalmente, reduzem-se a uma rábula canhestra, seduzidos com a sua auto-importância; nada neles é genuíno, tudo ganha um tom de birra, de alguém que quer a todo o custo preencher uma sombra que viu sempre escapar aos seus gestos, reforçando a ênfase até parecer-se com uma criança a fazer birra, e então, como intimamente se sabem impotentes, incapazes de exprimir as suas sensações ou ideias (a maioria delas também copiadas) com aquela convicção monstruosa que distingue os verdadeiros autores, decidem-se a ir à boleia, e é assim que, com as facilidades de um meio anémico como o nosso, se propõem como editores, traficando a sombra dos outros, vestindo-as como suas, nuns delírios retóricos que lhes permite passar a sua impostura como um sinal de empenho e resistência. Vão-se valendo das tantas entradas e saídas da torre de babel para aparecerem como agentes nessa representação nostálgica, nas infinitas reposições de um drama já gasto e que serve para nos virem com noções que nem são deles agora adaptadas a um catecismo estético. Daí esse culto do marginal e do periférico, que nos surge, afinal, esvaziado de qualquer conteúdo transgressivo e remete tão cedo para um moralismo de sacristia, para essas formas que adaptam o marketing dos selos comerciais a uma certa volúpia da má consciência generalizada, reforçando a ideia de um modo de pertença a grupos que se colocam em oposição ao regime das massas, mas se animam produzindo objectos consumíveis que trivializam a denúncia e a recusa dos modelos de auto-exploração. No fim, enquanto se instigam intrigas e rivalidades espúrias, logo se percebe como vai dar tudo à mesma caldeirada. E é assim que, mesmo nestes focos de uma infecção que se diz de natureza diversa, acabamos por ver as coisas destituídas de si mesmas e reduzidas a uma representação com todos os vícios da mais banal campanha publicitária. Os livros são cada vez mais um pretexto, e a verdade é que, sendo na sua avassaladora maioria obras traduzidas e editadas às três pancadas, acabam vendidos e depois postos nas mãos de uns filatelistas, uns tipos que na verdade já nem lêem, simplesmente murmuram as palavras, enquanto pensam noutra coisa. E, como passageiros adormecidos num comboio, se ocasionalmente ainda são sacudidos por alguma expressão ou conjunção de palavras mais afiada ou exuberante, logo resumem essa dormência em que os silvos e roncos sobre as palavras de outros os fazem sentir-se muito cultos, ainda que não abandonem por um segundo a sua composição moral e apenas fiquem a aguardar pelos momentos em que o autor se distrai e descai para os lugares-comuns, e então logo se sentem confirmados, pondo-se a assentir muito satisfeitos, às vezes rindo para mostrar aos outros passageiros que estão embrenhados nesse mergulho tão profundo Aos poucos, sentimo-nos todos a participar nessa composição de uma época que descendeu inteiramente à parolagem, ao falar fiado, quando as palavras surgem desligadas das coisas, quando o que se diz não cola com o que se faz, quando tudo são manobras, devaneios no regime geral da usura, um modo de exagerar diferenças de pormenor entre seres espectrais e indistinguíveis, mas que, sob pena de não terem uma ilusão que os arranque à abulia, não podem reconhecer-se e acabam a odiar-se, como o ser encarcerado num corpo disforme e que tentasse escapulir-se dele ensaiando em frente ao espelho fúrias desproporcionadas, golpes sucessivos desferidos no vazio, fazendo muito barulho por coisas de nada.

 

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