terça-feira, novembro 02, 2021


Com um pouco de imaginação
um tipo ainda pode fazer-se pagar
desta forma ou daquela, escrever cartas 
abrindo velhas feridas, baralhando o passado,
perseguir um breve enredo entre lugares
desses credíveis para um crime passional.
A última vez que escrevi algo bom
não havia ali uma ponta de realidade,
e então preferi recuar esperando um sinal
lembrando-me que quando um tipo lê
também os seus gestos se aproveitam
como detalhes de uma qualquer ficção.
E há essa atenção de quem busca
uma palavra fora do lugar, do tom geral,
de quem ao ler uma descrição triunfante
sente o sangue tomado de um brilho cósmico.
Dou por mim farto desta atmosfera sonâmbula,
desses retratos que se animam como filmes 
meio caóticos, dolorosos, deixando portas
mal fechadas. Existem estes ruídos fundos, 
esta sensação de se viver num aquário
entre os ecos da canção negra
que nos mantém os ossos ligados.
E há a dificuldade em dormir,
a vontade de espreitar uma janela, visitá-la
como fazias, quando dormia e ficavas ali
a iluminar-lhe o corpo com um fósforo
e a repetir uma frase baixinho, tão baixo
que mesmo hoje saiba ainda como
apanhar-lhe a roupa interior do chão.

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