domingo, abril 04, 2021


Resta-nos fazer florir os pregos, 
abrir o estômago de cada final apressado,
queimar os livros de versos como incenso,
devolver as imagens como manchas num vestido,
coser de novo a imaginação aos lugares
a esse quarto onde a luz canta
com um rumor de água,
saber que se a janela não oferece grande vista
o grilo que ocupou o canteiro tem fama de capitão,
e há o rastro do girassol que a persegue
e se incinera no escuro desde que me lembro.
Fantasia, cavalaria, pó,
enquanto algumas folhas bóiam no tacho
o perfume conta-nos o resto da história.
Subo às árvores que me falam dela,
ao que das flores ao fruto um gesto lança
longe como um pássaro.
Quem mais me dará a meia-noite tão viva,
capaz de me desfazer e refazer pelos anos
se nem já a sede das linhas imortais
me leva aos antigos tugúrios?
Antes prefiro esses charcos de que se bebe
até os cabelos embranquecerem.
Antes fôssemos cem aqui,
ocupando as mesas de um café
gritando ordens, disparates,
cuspindo para dentro do abismo,
lendo os meteoros, emborcando velhas ilusões, 
ainda limpávamos o sebo à realidade, 
mas o que ficaria disso além do pó aceso
e dos papéis colados, o riso nas gavetas,
o gume das sombras,
mais cem anos disto ou daquilo?
Peço à aurora que bata à máquina
o que seja de aproveitar e diz-me ela 
que nada. Uma geração a mais
ou a menos, que diferença faz?
Nem remorsos, nem um coração se salva.
Em redor uma água tão cansada,
as armas por aí largadas, só a ferrugem
e as carcaças como baloiços.
A morte assobia sem nenhum jeito
e até os inimigos hoje que inúteis são.
Ensaiam versos tenebrosos, falam muito
de mundos perdidos, mas toca para o chá
e lá vão eles.

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