segunda-feira, janeiro 25, 2021


Diz que gostava das minhas histórias, 
e estremeço de pensar hoje na paciência
que alguns tinham para desaires ritmados,
desde o flectir dos ramos, a voz tensa
germinada nas vísceras, o rude rigor de uma planta
subindo e rompendo os muros, espanta-me
se nunca lhe contei nada que batesse certo,
nem deixei que um relógio se ouvisse
alto na parede ou nalgum tumulto interior,
nas confissões frívolas de um personagem,
no fundo detestei sempre a clareza,
o mundo nos seus gonzos,
cenas ou visões que se desenrolassem
ordenando o caos, fazendo da flor uma vírgula
até o bater da máquina me ajudava
a desarticular a coisa,
fosse um insecto ou uma bela ideia
nem era um cuidado mas só desgosto
de tanto ouvir os passinhos para lá e para cá
dos seminaristas, o nojento rosário
por todos os lados (e se deus não fosse
o vigarista que é, mas tivesse vergonha,
que perseguição lhes seria movida),
é triste como tudo por aí tresanda
a morte antecipada, a procissão fúnebre
e pesa como uma doença no fígado,
atacando a pele das coisas, a aparência
amarelando o olhar,
enquanto a retina se afoga,
a humidade e as flores rasgam o papel da parede,
os quadros são alagados, as mulheres 
distribuem-se pelas taças radiantes
mas sem gosto nenhum,
como fruta perdida para a época
e há uma febre fria, uma dor nos ossos,
pensar como foi bom quando vinham
beber na nossa sombra nebulosas fábulas,
que marcas nos deixavam no barro da imaginação
estávamos atentos então a palavras
que dobrassem como sinos
e a ecos na pulsação, no sopro e na sede
os versos reconheciam-se como frases
dando cabo do juízo e da decência,
traziam-nos uma desolação animadora,
depois só um vento insiste e ficou
a trabalhar no nosso cheiro, 
como certas impressões que nos chamam
de noite, que nos voltam e se nos pegam
era preciso então ter-se um rosto imenso,
um queixo largo, cara para apanhar
murros bebedeiras para nos cuspirem em cima
esse ódio que é a mais sincera admiração
éramos feios e humilhávamos a beleza
velhos tendo pela frente adolescências heróicas
e mais do que um livro cheio de imagens bonitas
tínhamos alguma lenda tatuada
um esgar que nem a morte apagaria
sabíamos ir até ao fim
e dar uma trabalheira dos diabos
a coveiros e a doutores.


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