sábado, setembro 19, 2020


No fundo de água balbuceio, afino a voz
num pranto com rouxinol alucinado
com um arpão na dextra 
enquanto a mão mais fraca prende
à fibra do papel o mais animal dos versos,
sombra arrancada à parede,
as moscas do inverno gelam de tão quietas
e porque é mais tarde
nas paredes do meu quarto,
e sabem já o que me sucederá
a desonra, depois outros leões
piores do que eu e fomes tempestades
deambular sem rumo, ouvir mudarem as vozes
ouvir falar do cansaço como de uma lenda
algum relâmpago a medir o esforço, o riso
o gozo imenso a atirar-se para o cume,
baleia ou nuvem rápida,
golpe de ânimo absurdo na carne do que se conhece,
a dor desarrumando tudo enquanto te buscas
revistando os cafés e os cemitérios e as igrejas
e nem a metade é real, bah,
estou mais que cheio dessa zurrapa,
não quebrarei outro copo
para libertar a vida que nele se esquece
aladamente desço bebo do poço,
raspo do fundo restos de uma vaga ficção
mas desce aqui, dobra-te raios, vê isto
esmaga o percevejo, toma nota
deste cheiro miserável e tão largo, é o universo 
que se expande, como o beijo
que de nós fez afogados, como entre soluços
nos vimos pelos mares em uivos
como navios naufragados, isso tudo
tão mal ecoa agora na rua deserta que olho
e quem fui comove-me muito pouco
a noite dá-me a volta, aparece-me o seu velho astro
do outro lado, mordo-o como a um fruto
e atiro-o fora,
sinto-o na dor de dentes, a sua pele
a envolver-me o sangue frio
oiço-me pelos telhados repetir
a vida ou outra troca, forma fixa que me dá
só por um bocado e logo passa
de toda a admiração que senti
guardo só remorsos
passageiro, de raça nebulosa
tomo-me nos braços, finjo que choro
e a morte canta devagar, depois
engole-te em seco

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