quinta-feira, julho 02, 2020

Valerio Magrelli


Não é um copo de água o que tenho
ao lado da cama,
mas um caderninho.
Às vezes garatujo nele palavras no escuro
e a manhã do dia seguinte dá com elas
atordoadas e esbofeteadas pela luz.
São coisas nocturnas
deixadas a secar
que se enrugam e estouram
à luz do dia. Apenas uns pedaços espalhados
restam, cacos da cerâmica do sono
que submergem a página.
É o cemitério do pensamento
que toma forma entre as minhas mãos.


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Este caderno serve-me como um escudo,
uma trincheira, um periscópio, uma lacuna.
Olho desde um quarto escuro para a luz;
sem ser visto observo – é o ângulo furtivo do espião.
Componho a coisa para que cada linha
se multiplique como no milagre dos pães
– um registo de perdas e ganhos
para fazer o saldo das eras de comércio humano.
Superfície de carne na qual arranho
antes de adormecer, que acaricio e massajo
como o peito do pé
após um árduo dia de trabalho.


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A caneta nunca devia abandonar
a mão que escreve.
Com tempo torna-se um osso, um dedo.
Como um dedo, coça, aperta, aponta.
É um galho do pensamento
e dá os seus próprios frutos,
oferece abrigo e sombra.




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