quarta-feira, fevereiro 19, 2020

David Berman, ACTUAL AIR

ÁGUA CLÁSSICA

Lembro-me da Kitty dizer que partilhávamos uma ânsia profunda
pelo prémio de consolação, e ríamo-nos enquanto lavávamos o autocarro escolar.

Lembro-me da noite em que fomos acampar
                e a ouvi sussurar
"pensa em mim como um lugar" de dentro do seu saco-cama
                com o símbolo do centauro.

Lembro-me de estar na oficina do pai dela na cave
quando apanhámos um velho desconhecido a soluçar
no rádio de ondas curtas

e a noite em que ficámos tão pedrados que nos convencemos
de que a estrada era um holograma projectado pelos faróis dos carros.

Lembro-me que ela obrigava sempre toda a gente a votar
naquilo que devíamos fazer a seguir e da vez em que disse
"toda a água é água clássica" e timidamente virou a cara.

Nos jogos de volley os pais dela sentavam-se em cadeiras desdobráveis
como embaixadores do Indiana com o panache próprio do midwestern.

Ela ficou desolada quando eles foram de cana por operarem
um sistema judicial privado dentro das fronteiras dos EUA.


Às vezes sou despertado a meio da noite
pelo barulho de um carrinho do serviço de quarto e penso na Kitty.

Aquelas noites de verão junto ao lago municipal,
a discutirmos o paradoxo dos múltiplos Pais Natal
ou a sensação que é ser-se abandonado numa relação.

Ainda fico com aquele peso cá dentro no Labor Day quando o verão acaba

e lembro-me de como me referia aos namorados dela
por o não-sei-quantos, o que era manhoso da minha parte e queria
pedir desculpa a cada um deles, agora, onde quer que estejam:

Ninguém merece ser chamado por o não-sei-quantos.


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