sexta-feira, janeiro 17, 2020


Há uma porta que fechei até ao fim do mundo
Borges

A linha treme-me sem se perceber de cada lado vêm ou para onde se dirigem essas notas sem um texto, traduções, soluços, o pegar em mãos só para sentir o pulso e largar logo, não é este, não exactamente, mas o ritmo lembra, estamos próximos, que jogo se faz consigo mesmo para que mais ninguém entre, ninguém se sente, mas se tem de ficar aí, de pé, ao menos ajude-me a acabar a cerveja, e não se preocupe, isto, estas linhas, nem para mim significam muito, um balbuciar idiota, o meu espectáculo de derrota, estou com aqueles para quem a guerra ou a paz não faz a menor diferença, o inferno certamente não aguarda instruções nossas, talvez nos deixe um canto, uma sala de leitura, para continuarmos, como vê, temos lido de tudo, sem querer, como quem perde o juízo, quanto ao resto, chega de tumultos cá dentro, que tudo se indisponha aí fora, tanto se nos dá, "gemer, rezar, chorar é igualmente cobarde", anotei isto aqui, já não sei com que propósito, em tempos tive para mim o encanto de buscar a alguém, a ilusão, isso de andar por aí inquirindo as pessoas, levando um nome como se fosse um caso de vida ou de morte, juntando parcas informações, pistas, memórias, e com que firmeza nos aplicamos nessas demandas, e se nos desse alguma coisa, um baque a meio, morreríamos bem mais realizados, pulsando de curiosidade, bem mais do que levando a coisa até ao fim, as boas mortes foram tão perseguidas que hoje mesmo as mais banais são já como artigos de luxo, é preciso recorrer ao contrabando para se ter uma onde se caiba inteiro, de uma só vez e sem ir alguém de pendura, ou inventa-se a própria, correndo o risco que há em tudo o que procura ser original, essas tristes figuras, por mim gostaria de roubar hoje a bicicleta que por um triz não me entregou a uma sem dar sinal de entrada, tudo depois tem sucedido como se os preparativos houvessem sido feitos, e para quê estragar o luto de que já se haviam vestido, até morria para lhes fazer a vontade, mas depois há este detalhe: não me apetece, ir só por delicadeza?, não vou insistir que é cedo, mas, como o Lao-Tse, a ir-me desta prefiro mesmo ir indo, andando, e depois também digo que, ficando, parece que alcancei a porta que Borges se lembra de ter fechado até ao fim do mundo, e cativa-me este cerimonial dos lojistas a encerrarem tudo, o modo quase litúrgico com que os rapazes despejam o lixo e viram as cadeiras, a filosofia chega a parecer indecorosa quando se pode estar assim, íntimo destas flexões da rotina, e um homem precisa de tão pouco, convém-lhe até entender o menos possível, deixar-se encadear, apreciar este compasso lento das danças desoladas, a destilação em coisas de nada, os actos e movimentos que se repetem no que há de mais escuro, essa morte que não maça, em que cada segundo luta pelo seu espaço antes que o seguinte se lhe imponha, e mesmo aí parece sair resmungando, dá um chuto no balde de tinta, e sei que havia mais alguma coisa a dizer, mais duas linhas ou três, mas agora não se consegue, a tinta consumiu-as.

1 comentário:

ZMB disse...

Como paredes através das quais
o mundo vemos pelo ser dos outros,
quem vamos conhecendo nos rodeia,
multiplicando as faces da gaiola
de que se tece em volta a nossa vida.

No espaço dentro (mas que não depende
do número de faces ou distância entre elas)
nós somos quem nos somos: só distintos
de cada um dos outros, para quem
apenas somos uma face em muitas,
pelo que em nós se torna, além do espaço,
uma visão de espelhos transparentes.

Mas o que nos distingue não existe.

Jorge de Sena, Sinais de fogo
página 505,
edição colecção mil folhas, Público