segunda-feira, dezembro 30, 2019


Que tristeza a relação desses balanços ("é como se, mais ou menos conscientemente, puséssemos de parte momentos presentes para mais tarde regressar a eles, como se fossem fundos de pensão para a velhice" [Alberto Manguel]) e o ano, que agora se remira no reflexo de uma faca, olha o tacho em que será cozinhado, já depois de o depenarem, e talvez se pergunte se lhe serão poupadas as unhas... os dentes certamente, mas e que forma triste é esta de se ser identificado. Que triste ser-se alvo de um último exame, apenas para que a autópsia diga que foi veneno de rato. Ora, nessa relação não queremos meter-nos, fazer um molhe das folhas caídas, já feias, dar conta desses pequenos feitos, quase ridículos, que agora se perfilam, impecavelmente fardados, com os galões bem à vista, nas listas, nas vagas propostas de uma eternidade que se nos tem recusado, e que acha deplorável este hábito que tem provado ser um ofício praticado nas horas extraordinários pelos nossos tão prestáveis coveiros: afectos relambidos, graciosidades mundanas, alianças vulgaríssimas, os esquecimentos ainda mais mastigados, mais óbvios, e depois os projectos, planos tão insistentes e aborrecidos, e que não apagam o desinteresse que já não sabe disfarçar-se, porque toda esta gabarolice fede demasiado, porque é a evidência de uma tremenda falta, de um desejo que vive de rastos, um sentimento do fim que mal nos deixa respirar, e ninguém acredita que algo possa recomeçar depois de um final tão fingido, um corte sem a menor convicção, assim, deixamo-nos agitar como a espuma no interior de velhas garrafas que há muito não são abertas nem delas se bebe, somos a ideia desse longo trago num vinho que talvez nos organizasse as entranhas, desse algum sentido e fruição a todos estes desgastes e preparativos. De tanto nos aprumarmos para a vistoria da morte, aquela que finalmente há-de registar o óbito será uma funcionária insignificante, esgotada, doida para acabar o serviço e retirar-se, comer a sua sopa, sozinha, acabar de bordar umas meias, e ir deitar-se, para voltar ao trabalho bem cedo, na manhã seguinte. E então, em vez de listas, lamentos ou pragas, fiquemo-nos por uma citação do Camilo, que sabia pôr uma rolha na garrafa mesmo que fosse a um gole do fim.

“Não pense em jazigos! Coma e beba; a vida é um pagode, uma asneira alegre que se vai numa gargalhada. Quem cá ficar que nos enterre onde quiser. Que diabo!"

Sem comentários: