sábado, setembro 14, 2019


Era de esperar que se escavasse abaixo do zero. Há gerações que não produzem um só protagonista, nem um personagem delicioso. Não acham nas suas reservas um anjo irado, um escaravelho que empurre a sua bola de esterco por uma distância que canse os céus. Pior é como a época se compensa e o disfarça, vem-nos com a infindável lista de candidatos. Currículos e recomendações. Como cada um se nos mete pela frente, enumera os tantos dotes, e, rejeitado, lembra o gafanhoto a dizer que isto não fica assim, que volta, que da próxima nos traz as pragas bíblicas. Maldição da fraca presença, empregados de mesa desse tristíssimo cabaret que não fecha por nada deste mundo. Repara no seu dilúvio pingado, reuniões da comissão taralhouca. Hoje o diletante é todo um circo arrasando as províncias com o seu mesquinho fabulário, sem sinceras distracções de bicho, a consciência atazana-o com ideias de grandeza mesmo ao limpar o cu; se prende um assobio com alguma vivacidade logo se imagina a compor sonatas, liderar óperas, e aborrece os amigos com a dor das imensas possibilidades que o acossam ao longo de uma hora só. Não aguenta todo o talento desperdiçado. Mira-se nas montras, cospe no pente, acachapa o cabelo, acha-se despencado de um mito dos antigos, e ainda que não deixe de cumprir com todas as obrigações desde que se levanta até se lançar à cama, entrelaçando os dedos como uma adolescente prometida, se tira quartos de hora para aliviar-se nas murtas, dar uma volta entre os campos, logo se põe a fumar um caule de flor e a imaginar-se um admirável andarilho, um sujeito de uma insubmissão exemplar. A maior banalidade merece-lhe um grande temor. Ensaia-o como se a natureza lhe imitasse a expressão, lhe fosse um espelho portátil, fluído, e se calha ter audiência, lá vem o relincho moral, a macaqueação e imitação das posições doutrinais. Diz-se um pastor de riachos e tempestades, numa charlatanice de ganâncias irrisórias, um usurário do ego, tudo por uns trocos de ilusão. Vai lendo como um catador de piriscas, tentando saborear a inspiração na saliva já seca do outro. Órfão de musa, só lhe resta desdenhar a deste ou daquele. Compara-se e o seu desânimo com o das páginas mais encharcadas da literatura, os urros dos grandes amotinadores da consciência, trocando-os em personagens de inquietação canalha entregues a alcoolismos coceguentos, sem vertigem nem uma sede raspada mais fundo, só essa figura que se ouve rouca e aos tabefes no fundo da cantina a exigir outro mezcalito, por favor. Mediúnico cronista, xamã emparvecido, furioso aforista, notário da pequena edição, pregador da fé que se puser ao dispor, relojoeiro deste tempo alheio e de feitio turvo e nebuloso, marchetador da via do comércio piolhento, especialista de inventários, orgulhoso gato pingado a enterrar carne morta convencido do seu tesouro, pevideiro, comentador de tudo na mesma hora, filósofo ou bruxo e, porque não, poeta também.

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