quarta-feira, agosto 21, 2019


Talvez tudo seja sinal da fome que passámos. É de imaginar que até a carne das gaivotas se tenha comido, e a dos corvos, porque não? Nem essa seria de desaproveitar. O bico destes terá sido usado para se inscrever o nome na pedra até se lhe esquecer as letras. Que dores no juízo nos dá ainda. São comuns as doenças raras nas vidas encostadas ao mar. E o que foi das garrafas, de todas as súplicas que nunca ninguém leu? Ter ensinado um povo destes a escrever, uma língua que sempre se falou mal e se escreve ainda pior, não podia dar outra coisa que um desastre grosso. Ao francês foi-se buscar uma certa finura de modos que disfarçava, mas a rudez tem algo de implacável. A vida literária portuguesa, quando se passa além dessas alas iniciais dos maluquinhos de entreter, essas vaidades mecânicas que parecem funcionar a moedas, é uma insânia. Aí sim começam a ouvir-se os gemidos nos fundos de um hospício que se criou por inércia. Uns tipos amarrados a camas de ferro, exorcismos abandonados a meio, sombras de pé em quartos podres, salas cheias de troféus e carcaças mal empalhadas, diplomas cobrindo as paredes. O talento é uma péssima desculpa, a convicção esse piano a giz desenhado no soalho. Cada um trepa pela imaginação para ouvir soar mais qualquer coisa, grandes concertos se dão por aqui, como no jardinzito pardo os heróis do guelas, os deuses do pião, de bolsos rasgados andam numa agitação estéril, pobres tarados de roda de si mesmos. A nossa obra capital há-de ser uma enciclopédia de todas estas disfunções que se fingem tão encantadoras, nobres, para depois se instalar essa épica mesquinha, as incuráveis doenças inventadas, o teatro sórdido e infinito. Na cantina, até os ratos participam, em troca de miolo de pão, nas recriações dos episódios mais negros, a própria história atacada pela peste. Os rapazes aborrecem-se com as longas cartas da amada que eles mesmos pagam a um, com um pouco mais de astúcia pornográfica, para que as escreva e lhes enderece, e há o vento que não nos deixa, como uma consciência comum, tão ressentida. Despedem-se uns, vidas inteiras a agitar um lenço sujo, e outros perdem-se em eternos preparativos, formam-se tripulações; ao leme temos sempre um sujeitinho cadaveroso que finge avistar índias e brasis, recitando algum salmo ulceroso a um papagaio de cera, ao lado um retardado ora pára a benzer-se ora toca insistentemente as duas notas que sabe num órgão de igreja como se fosse lembrar-se do resto, outro desenha nuns papelinhos a sua ilha, e não tarda volta a insistir que tem lá escondido um grande tesouro. Sobre as cabeças, a esparvoar, o urubu-vigilante, tirando medidas à vista grossa, vai calculando a ordem em que poderá reclamar-nos os ossos para se enfeitar, e há cada historiador mais taralhouco e aldrabão, como este, coitado, arrastando a sua saca com livros, empobrecendo-os com a sua leitura gaguejante. E ninguém se lembra de melhor fim do que dizer que a coisa continua e que a morte tem muita pena, mas que nem ela quer ter nada a ver com isto.

Sem comentários: