domingo, março 24, 2019


Gostas de beber das garrafinhas pequenas, e de canções em que miúdos com o dom da velha voz se limitam a contar pássaros, te dão detalhes do céu, esse para o qual não te dás mais ao trabalho de olhar, tens dores mais antigas que tu, bêbeda, de leve, deitada na banheira, reatando os nós dos dedos, quase flutuas lembrando as intimidades que tiveste com um morto, que agora levou segredos teus para o além, as coisas que lhe fizeste, aquele corpo vagaroso, pesado e calmo como um navio, os lugares comuns, inocentes, indiscretos, que já não sabes quem os disse ao outro, e gostas de telefones públicos, chegas a andar quilómetros para usar um, e as cabines, procura-las como a santuários, descrições antigas da vida íntima de civilizações extintas, na cidade não tens nada, todos os jardins são uma decepção, estás magra, ainda há quem se lembre de ti ruiva, mas hoje só restam os olhos, grandes, frios, foste à terra e sentiste que lhe pertencias, mas depois lembrou-te a morte que conheces de menina, se não passasse o comboio duas vezes ao dia não passava nada, são lugares bons para deixar de sentir seja o que for, um vazio que de fora é confundido com tristeza, podes enfim comer o sentido livrando-te das entranhas, bastou a janela acesa esta noite para sentir que me escrevias, depois de dias fora, passei sem o menor sinal, eu gostei de ti quando eras bela, e quis-te, mas era cedo, depois foi a tua vez, e já era tarde quando me voltaste a ver, e tivemos muita pena, tu ias morrer e eu já não tinha nada do rapaz que conheceste, nunca andei no teu carro batido mas lembro-me de imaginar as estradas secundárias por onde o metias, estreitas, de terra, levantando nuvens, para ires com mais alguém, e vejo como puxas a camisola sobre a cabeça e ele te arranca o sutiã por cortesia, pois as tens tão pequenas, mas nunca foste menos que uma mulher, e se te arranjasses menos podias sempre ir com outro tipo de homens, foder com as luzes ao longe, segurar-lho como se o escuro afectasse até o instinto e não fosse claro o que havia a fazer com ele, e assim comparo-te a Eva imaginando o gozo que seria atravessar o desejo sem nenhuma indicação, sem saber como acabar, talvez os anjos te reconheçam, visto daqui, o simples passar dos anos torna-se uma feliz derrota, e quando já não sabemos dormir, adormecemos, e quando já não pensava em ti, tu morres.

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