apanhar no ar aquele grão obscurecido de talentoso silêncio, esses quartos onde a imundície é de outra espécie, com uma jarra de flores de um amarelo narcotizante a inclinar a perspectiva, pinceladas fervorosas, cada emenda que só brutaliza mais ainda o erro, a falha interna, um ambiente que ainda há pouco nos extasiara e agora já declina, começa a contorcê-lo a náusea, e nos lembra estórias que ouvimos há muito, que nos impressionaram tanto que fomos obrigados a esquecê-las, mulheres que ficaram de pé, como se fumassem, que nos olharam de frente, de uma altura indizível, uma vida inteira com o receio de manchar-se o nome, todas essas pulsões sufocadas, a respiração controlada atrás de que boca, um rosto de mulher surpreendida por se ver retratada nesta época com demasiados sabores à escolha e gosto nenhum, resta-me olhá-la demoradamente notando a forma como se lhe pronunciam os seios através de uma camisola antiquada, caindo como um lençol, preso entre os braços, encostada a uma árvore que daria duas dela, imagino que se comova por saber que a Broch lhe bastava a respiração, e que fosse o seu mais profundo vício, e ela, como é próprio dos condenados, lê-o, reconhece-se e sorri, também lhe agrada ficar aquém, não respirar o suficiente, nunca o fazer senão nos consultórios, quando algum médico lho pede, e guardar-se de resto para os momentos a só, para as novelas passionais que não lendo nem se permitindo escrever, a arrastam por meio de breves passagens, outros tratos com a linguagem, uma sensualidade a que se atreveria apenas sob um nom de plume, resta-lhe lamentar as mortes que ainda mais a afastam destes dias, e além disso há um desdém que não chega para uma acusação, tem a sua própria lua, segue-a, entrega o tédio, despeja-o, como se os contos de Tchekhov fossem plantas, exigindo que alguma mulher em cada geração os regasse enquanto vive os seus dias por dentro, e na corda, estendida, a sua roupa interior fosse secando cá fora, sem que o cheiro da ausência descole, e espanta-me tão empenhado desinteresse, esta forma de graça, como se me explicasse os pintores, indo ponto por ponto como por números, imitando a paixão com que nós, os deste tempo, nos detemos perante certo detalhe de um quadro num momento, e logo, no seguinte, somos outra coisa, e não nos lembramos sequer de olhar para trás, e, como dizia a sua avó, não temos o suficiente para esboçar modos elegantes, não somos mais do que seres apressados, a nossa alma um gatafunho, causamos uma certa compaixão observados de perto, mas só isso, seres que "admiravelmente mentem a si mesmos", e talvez ocupássemos melhor os nossos dias de volta de alguma obsessão incompreensível, coleccionando musgos ou borboletas, nesses "ofícios dos vaidosos e dos heróis domésticos", adoro a forma como ela tecia com um aracnídea convicção frases em que lucidez e lirismo se digladiavam tão duramente, como quando nos destina como obra de uma vida o chamado herbário, adiantando que este "absorvia muitas mazelas de carácter em adolescentes invejosos", e nunca fomos outra coisa que uma idade invejosa, tivemos durante um período demasiado breve um encantamento pelos clássicos, os mais velhos, e logo envelhecemos, e a inveja que tínhamos traiu-nos quando se voltou para os jovens, tudo o que havíamos deixado de ser, daí o deslumbramento por figuras quase desleixadas com a sua existência, como estações dando sinais de vida contra restos de civilização, ruínas tão depuradas que parecem finalmente ter atingido a maturidade muito depois de se ter apagado qualquer resquício da sua antiga função
quarta-feira, março 06, 2019
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