sexta-feira, fevereiro 01, 2019

"Diante da morte o importante é estar"


"Diante da morte o importante é estar", vincava o poeta faz já três décadas. Foi quase no começo do que, de forma algo recalcitrante, provou ser uma obra de uma coerência espantosa, num livrinho chamado "Sobre a nossa morte bem muito obrigado"(1989, &etc)... E começa aí a diferença de quem não se perde nas palavras, não fica só por elas nem faz delas mais um jogo para adiar a morte. E se não se serve delas como quem pede crédito também não lhes mudava o sentido à última hora para justificar humores, cobrir o rastro às suas faltas, trair o que antes jurou defender. Porque eram um modo de cortejar a verdade, as de Rui Caeiro fazem do seu desaparecimento apenas a oportunidade para contar a história de novo, a partir do fim agora, como se, na sua ausência, pudéssemos conhecê-lo sem o inconveniente de acertar uma hora, e sermos pontuais senão com nós próprios. 
Tão poucos nos esperam nos seus escritos com a mesmíssima generosidade e graça como estava sentado à mesa do café, disponível para escutar e falar, e relê-lo é sentir como pôde ainda passar mais uma vez os olhos pela frase impressa, e, na exigência com que foi passando a vida a limpo, ainda fez outra emenda, e a frase de novo se deixa ler ainda mais enxuta do que antes. Se «a loucura onírica nos é mais íntima do que o nosso íntimo» (Agostinho de Hipona), então é indo aos papéis que havemos de prosseguir o convívio, os que o conhecemos. E os outros poderão descobri-lo na liberdade plena do seu poema-conversa, que não quebrava tanto para marcar o verso como para que quem tinha diante de si pudesse falar-lhe. Era esta a lição constante de um leitor infatigável, que guardou para os seus escritos esse especial segredo: que a maior virtude num texto não é o de impressionar, mas de encontrar um estilo o menos literário possível, o mais terreno e claro, "o seu estilo não mundano de ser no mundo", para que fosse ele a ler o leitor. 
para o obituário, no semanário Sol

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