segunda-feira, fevereiro 11, 2019


Aberta a morte do amigo, que coisas temi ver e não vi, que vícios trazia e são próprios de quem se deita a admirar algum mistério sombrio, e mesmo que o faça diabolicamente é vencido, pois o pior ainda foi o que não se deu, o que do mundo sempre nos falta, ausências repugnantes, gente que, estando viva, nos explica a morte, a sua miséria, o lado mais negro disto tudo que se confirma no fim. Havia sonhado de forma atrapalhada as últimas coisas. Soube-o tarde, mas foi cedo afinal. E há aquela hora antes do sono, em que a morte nos visita, essa que víramos juntos, sobre a qual trocámos impressões, andava ela pelos jardins, rindo-se depois de nos fazer um gesto obsceno. Eram grandes as áleas do jardim que eu fiz, rabiscando-o no escuro; sei lá porquê, supus árvores de flores a propósito de uma suave despedida. Mas não, foi uma coisa crua, apressada, como se alguém desse à corda, e sentia-se o nó, não no pescoço, mas sobre a cabeça, um nó num saco que nos apertasse no escuro. Além disso chovia, tínhamos os pés cobertos de lama, e a pressa eu julgo que fosse um certo temor de se ser marcado. Antes, na sala branca, onde o espanto respirava para dentro de um outro saco, nem o fixei receando que se mexesse, mas, pelo canto do olho, vi-o dormindo intacto, ocupando a mesa toda, como quem houvesse escrito a última frase e deixasse às letras o sufoco restante. Já desinteressado deste alvoroço, talvez ficasse indiferente ao nosso contido motim nos porões de uma deriva surda. Antes que a terra o fizesse ouvir o seu íntimo, ou a conversa dos bichos, senti-o como a um cordel preso pelo pulso que umas águas nervosas retesam, e antes que o desamarrasse ainda quis saber se é isto só, que estreito barco o levaria. Que uso frio para o seu nome me restará? Mais ainda, que luz perturbo neste mundo se o chamar? Ou terei apenas a terra à altura da boca, um peso em cima, talvez uns passos por que o oiça, na hora em que também os anjos se aborreçam, busquem umas traseiras, um lugar menos iluminado, docemente imundo, para beberem, denunciarem de Deus os podres, e eu, nisto, imaginando como essa magna questão continuará tão sua, que nas minhas dúvidas estaremos os três, e, sabendo-o de riso fácil, como o dos homens gratos, em silêncio escutando, estudando mais outro ângulo da coisa, vou-lhe perguntando como tantas vezes me obrigava a fazer: "mas está aí?" E se quer saber a diferença que faz, faz alguma, Rui. Agora sim, nesse silêncio que ninguém corta, e nos é devolvido, carregado de veneno, então sim, se percebe a diferença entre o puro nada e esse doloroso embaraço que nos provoca o vazio.


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