sábado, janeiro 12, 2019


Escrevem poemas em que falam contra a poesia; desgraçam-na com todos os pormenores, deliciados com a mais baixa biografia. E como exigem pouco da realidade! Logo, queixam-se que hoje não se lê poesia. Mas ler o quê? Esse tímido namoro à morte? Essa que a cada dia morrem como gado atropelado, fugindo do menor prenúncio de guerra. Assim, também as estações fogem umas pelas outras, as folhas caindo e, depois, nem um barulho. Juntam-se, enterram-se a si mesmas, outras enegrecem, viram barcos, e de cada tanque fazem um porto mendigando um rumo às estrelas. Mas nós já nem com o mar contamos, lemos no seu silêncio um final terrível: os navios não zarparão... as ilhas remotas não existem... Para não se ser arrastado para lá de si, um tipo arma-se daquilo que lê. Contra o mundo, esse tráfico de nuvens injuriosas num céu que sobre nós se partiu. O dia é ganho marcando uma página, alguma frase que nos sirva de apoio mesmo depois de mortos. Os dias encurtam, o sol larga os ossos pelo caminho, a tarde vem-se desabotoando, as noites já chegam de joelhos e abatem-se nos nossos quartos. Fico no escuro com um gesto e dois olhos ou mais. A respiração silenciosa, atenta, devorando fantasmas. Guardo sons que trabalho, racho o meu sino devagar. Nunca mais verei um beijo de perder o rosto a voz e o nome. Sinto apenas de longe o cheiro a sabão, uma vela reabrindo o corredor com um cuidado descalço, vertendo o silêncio de um cântaro para outro. Coisas que se repetem de uma ponta à outra da alma; a distância que nos cabe segurar para que deste mundo não se diga que não houve mais quem lhe escapasse vivo.

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