Vaga canção por desejo desferida
I
Não pudesse senão como uma sombra
balançar-me nos flancos da luz
recolher na pele quantas pedras de mim façam
a montanha, arvorar num altíssimo estrondo
e com quantos gatos na rua
cheirar-te, ainda me coso e ao nome
por dentro, nas bainhas como sementes
somos um do outro o silêncio entre notas: fumo, pássaro
a canela e a camisa de noite, de molho
como uma frase presa, onde te tenho cativa,
um esboço vivo,
e nem vejo o que a carne possa dar-me mais
do muito que te fixo, cerco, colho pelas costas a rosa
roço-me nos espinhos,
e se deixo pela terra as pétalas, as partes,
parece que entendo e sinto o que me escapa
vejo que nem o escuro pode com isto
forço-me, e sou eu o devorado
II
É natural que sentem os amantes
à mesa dos canibais
conhecedores dos sagrados prazeres,
dos livros maduros e do que torna admirável um corpo
as provas todas, do intenso do cheiro
ao fragor sujo de uns dias sem se lavar,
da curva que tens entre as linhas principais
sinto-a puxar-me a corda, e tal
como a fome se enche de pão e queijo
faz o mesmo o desejo depois de estar às janelas,
tirando o mais da boca dos outros
mas uso mais certo lhe damos farejando de noite
os quartos mais fundos
descendo por degraus infinitos onde
por mais alto o gemido ou do tanto que lhe bata
nada se escuta, não existe já mundo lá fora
III
Colhe um fruto que se tome por íntimo dos astros
como de um rosto há imagens que se cortam à faca
e arrancadas as portas aos gonzos
cantado todo o eco te interrompe
tanto do que te chama aos níveis inferiores
onde o sonho se reúne ainda, intacto
seca-o, tira-lhe o gole, ou aspira e bebe do odre vazio
um canto mudo que te atravesse a cara, e a casa
como o raio vagabundo de sol que da flor no copo
escuta a trama inteira,
só um sopro ou a música de quem mastiga,
doce truculência, trabalho da saliva dentes e língua
o que pudesse surdo ainda perceber
patadas, beliscaduras, cheiros vivos que se trocam
as desgraçadas cores que do mundo nos dão o grito,
uma selvajaria mas de honesta proporção
e por mim bem posso morrer de um ritmo
como monstro de assombros que ao vento ainda
inspire uma última volta
IV
Fosse o soldado de uma companhia qualquer, pouco interessa a época, seguindo-os até à fronteira, com que ordens, e por que batalha?, sem rumo, perdido com pensamentos, colhendo ao acaso, com a bebedeira do cansaço, detalhes suaves, como um calmo morto, encantado do seu pobre destino
e para quê isto?, pois por uma voz dessas que
mortas têm o melhor alimento
o vinho que se bebe do elmo de outro
com lembranças, sangue seco
e a demora inquietante dos seus passos,
outros vultos sorvidos num ápice
e de que febre as sensações, ares roucos, lumes frios,
caules dobrados e os caminhos mordendo a língua
refúgios onde luzem fungos comestíveis,
roçam-se as ervas altas na barriga do vento
e como tudo se sente próximo, respira
uma água que de um cometa antigo tenha sorvido
o desalinho dos cabelos, tomando-lhe o gosto veloz,
o desastre decantado, o tremor e a nuvem,
ou a natureza numa amedrontada insistência
cercando-o, como se o saqueasse
alargando a ele a sua vaidade silvestre
V
Posso aprendê-lo,
se chove e oiço sem me mexer tanto
ou me dá a sede do que é bebido na terra,
vertido por uma longa memória
até que a sílaba se derrama,
se derreta o ouro com o que num pote fervi
acabando sobre a forma que me apeteça
vivida a sua breve estação, resta
deitar-se como a outro, e conchegá-lo
com algum veneno no ouvido,
estar a sós, ruindo, num gozo indecente
como o degolado que arrastasse pelos cabelos
a própria cabeça, e esta lhe fosse
lambendo da mão, chupando-lhe dos dedos
o sangue ainda quente leitoso doce
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