quinta-feira, dezembro 27, 2018

Miguel Serras Pereira, a outra aranha, e a espera que as duas fizeram, não por Godot, mas pela tão ansiada mosca-Rimbaud (3)




Duas aranhas esperam a mosca
com radiadores ventiladores rosa-chá
passagem ao estado de amora
alguns coupons
e várias teses de combate moderno

A mosca
passa
ou não passa
é um pouco como todas as coisas
estão mas não aparecem
e podem levar anos nisso

Mas duas aranhas esperam a mosca
com serviço de Turismo Dlão
lume aceso
página de sentença judiciária

Ao fundo
o galo enerva-se e quebra a mobília
numa grande convivência francesa
co'a mosca que foge espavorida no vento


(...)

- Mário Cesariny
in Manual de Prestidigitação

É giro, não é? Como esta rima descabelada saltou lá dos seus preparos e veio aqui, alegrar este insosso drama. Pois já vimos algumas coisas, não passámos o pente tão fino que ficassem à vista todos os piolhos, outros virão, talvez, fazer a sua parte, isto se não se concluir, afinal, que neste caso só raspando. Tenho outro poema-mutilado de Rimbaud, combalido e de muletas, como quem atravessou a fronteira e deu por si com um estranha doença nos ossos, que o impede de dar um passo seguro, firme. Meio zonzo, não se livra do aziado gosto que lhe deixa o descobrir-se em português, um tanto ruço, longe já do mito do adolescente escandoloso, como quem houvesse posto um braço de fora de um sonho para apontar umas coordenadas miraculosas e, na manhã seguinte, se desse conta de que nada do que ali ficou tem encontro com este mundo ou outro. 
A “Obra Completa” de Rimbaud que, este ano, se publicou entre nós, foi claramente assumida como uma iniciativa do editor da Relógio d’Água, Francisco Vale, que para acelerar a coisa até a distribuiu por dois tradutores, os quais, por sua vez, não se conhecendo, nem trocaram notas durante o processo, a ponto de, quando calhou produzirem duas versões do mesmo poema (por se encontrarem nas mesmas ou em anteriores versões na correspondência do poeta) não as terem sequer cotejado, trocado impressões, dialogado... Então, dois tipos traduzem a mesma obra de costas voltadas, porra!? Mas se mesmo assim a iniciativa não deixa de ser louvável, e se pode ter nascido do desejo de dotar finalmente o leitor português desta obra que, depois de descoberta, não pôde mais ignorar-se, e com quem todos os poetas, desde então, consciente ou inconscientemente dialogam, o certo é que a coisa estava torta já na ideia, no plano pré-natal, muito antes de levar o tabefe e desatar neste chorume. Seria coisa de esperar de “um organizador de culturas”, “à patada entre lombo bojadouro e alcatra”. E agora, que fazer se “tudo isto cheira a hera para estátuas líricas”? Não deu um escândalo gigante, ou pequeno; nesta terra nem podia. Resta esperar a oxidação, e que arrumem esta “lata de tinta de borrar a vida” (sim, estamos ainda com o Cesariny, quem sabe se numa glosa, exercício poético, ou simplesmente no osso próprio, que ele entortava como queria)... Isto “enquanto não chega a mão definidora”. Cá estamos, eu e o Ricardo e mais um ou outro, dados como tontos por nos importarmos um pouco, nos zangarmos com coisas destas, este “vento de cinzas”, este “organizado anoitecer geral” com a morte a rondar por perto. Então, vamos “crianças para a cova espigar um rato cinzento”, e vamos, assim, “cessando connosco todo o murmúrio”.

Eis, no original, o poema “L'Éternité”

Elle est retrouvée.
Quoi? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Ame sentinelle,
Murmurons l'aveu
De la nuit si nulle
Et du jour en feu.

Des humains suffrages,
Des communs élans
Là tu te dégages
Et voles selon.

Puisque de vous seules,
Braises de satin,
Le Devoir s'exhale
Sans qu'on dise : enfin.

Là pas d'espérance,
Nul orietur.
Science avec patience,
Le supplice est sûr.

Elle est retrouvée.
Quoi? - L'Eternité.
C'est la mer allée
Avec le soleil.

Agora, e para efeitos de comparação, aqui fica uma versão (ou glosa, eu sei lá o que o Serras Pereira chamaria a isto, e também não me atrevo a perguntar-lhe, que ele a mim não me diz nada, nem comenta... é que nem pia) de Ivo Barroso:

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

Alma sentinela
Murmura teu rogo
De noite tão nula
E um dia de fogo.

A humanos sufrágios,
E impulsos comuns
Que então te avantajes
E voes segundo...

Pois que apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
Sem dizer-se: enfim.

Nada de esperança,
E nenhum oriétur.
Ciência em paciência,
Só o suplício é certo.

Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.
 

Anterior, a esta, talvez ainda prefira a de Augusto de Campos:

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no mar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.
E, finalmente, para os anais, a tradução de Miguel “Mão de Deus” Serras Pereira:

O quê? Reencontrada?
Sim, a eternidade.
É o mar que vai
E com ele o sol.

Alma sentinela,
Confessa o murmúrio
Da noite tão nula
E do dia de lume.

Dos humanos votos,
Dos anseios comuns,
Solta te destolhes:
Tu voas segundo…

Sem esperança sempre.
Nunca orietur.
Ciência e paciência,
Segura, a tortura.

Só de vosso arder,
Brasas de cetim,
Se exala o dever
Sem que se ouça: enfim.

O quê? Reencontrada?
Sim, a eternidade.


O quê? Satisfeitos? Pois devem gostar que vos faça a cama e vos deite, conte uma estórinha, a eternidade… Mas tadinha, com tanto século a ventar na cuca, soa meio gagá… os tremores, a gaguez. Não está aqui a curta distância cheia pelos movimentos de língua que se quebram nos dentes. Mas vá, com bem menos espinhos no que toca a simetrias, vale a pena ir ler também o poema “Âge d'or”. Primeiro no original:

Quelqu'une des voix
Toujours angélique
– Il s'agit de moi, –
Vertement s'explique:

Ces mille questions
Qui se ramifient
N'amènent, au fond,
Qu'ivresse et folie;

Reconnais ce tour
Si gai, si facile:
Ce n'est qu'onde, flore,
Et c'est ta famille!

Puis elle chante. Ô
Si gai, si facile,
Et visible à l'oeil nu...
- Je chante avec elle, -

Reconnais ce tour
Si gai, si facile,
Ce n'est qu'onde, flore,
Et c'est ta famille!

Et puis une voix
– Est-elle angélique! –
Il s'agit de moi,
Vertement s'explique;

Et chante à l'instant
En soeur des haleines:
D'un ton Allemand,
Mais ardente et pleine:

Le monde est vicieux;
Si cela t'étonne!
Vis et laisse au feu
L'obscure infortune.

Ô ! joli château!
Que ta vie est claire!
De quel Âge es-tu,
Nature princière
De notre grand frère ! etc...

Je chante aussi, moi :
Multiples soeurs! voix
Pas du tout publiques!
Environnez-moi
De gloire pudique... etc...


Agora é Ivo Barroso a pôr o remoinho de sons na caixa:

Qualquer voz assim
Angélica e rica
– Trata-se de mim, –
De cara se explica

O mar de questões
E toda procura
Não trazem senão
Ebriez e loucura;

Reconhece o humor
Tão fácil, que brilha,
É tudo onda, flora,
E é tua família!

Pois ela canta. Ó
Tão fácil, tranquila.
Visível a olho nu...
– eu canto com ela, –

Reconhece o humor
Tão fácil, que brilha,
É tudo onda, flora,
E é tua família!

E uma voz enfim
– Angélica e rica! –
Trata-se de mim,
É claro, se explica;

Num hálito irmão
Canta de repente
Em tom alemão
Mas sonora e ardente:

O mundo é vicioso,
Se isso te apavora!
Vive e deita ao fogo
A desgraça obscura.

Ó belo castelo!
Tua vida é pura!
De que idade és tu,
Príncipe natura
Desse irmão mais velho! etc...

Também canto: em voz,
Mil irmãs que sois,
Não de todo pública!
Envolvei-me vós
De uma glória abúlica... etc...
 

E aqui vai a tradução de Serras Pereira:

Entre as vozes uma,
– Angélica a crismo –
Que de mim se ocupa,

Explica-se ríspida:

Essas mil perguntas
multiplicando outras
Mais não são, no fundo,
que embriaguez louca.

Tão viva, tão fácil,
– assume – essa via;
Só flora, só vaga:
É a tua família!

E das vozes uma,
– Angélica a crismo –
Que de mim se ocupa,
Explica-se ríspida;

E assim canta então,
Irmã dos alentos;
Num tom alemão,
Mas cheia e ardente:

O mundo é vicioso,

Mas isso perturba-te?

Vive! E ao fogo cede

O infortúnio escuro...

Ó lindo castelo!
Tua vida tão cândida.

Que idade é a tua,
Principesco sangue
De nosso irmão grande?

Eu, também eu, canto!
Minhas irmãs tantas;

Vozes, nunca públicas,
De uma glória púdica

Ressoai rodeando-me.

Há momentos em que parece um madrigal, outros um trava-línguas… Onde ele diz que se explica ríspida, a Llansol preferiu dizer que o faz “sem papas na língua”, onde ele sentiu a embriaguez à mão da loucura, ela viu êxtase e forrobodó… O confronto de diferentes versões de um poema não tem interesse apenas para escolher uma, preferi-la e riscar as demais, mas cada variação abre um espaço, ventila, deixa que o ar passe entre as palavras e os versos, desafoga-as, é uma forma de leitura crítica altamente empenhada, e que nos ajuda a fugir dessa operação clínica, a deformação profissional que enquista os textos, esses que, incapazes de assumir com propriedade os seus erros, com a ousadia que faz deles desvios inventivos, resgata o poema aos seus ângulos mortos, acha-lhe outras virtudes, segue-o, inspirado, libertando-se. E os que tão certos rejeitam isto, asseguram que não é essa a “tarefa do tradutor”, no fundo, com a sua desconfiança, o que revelam é aquele ressentimento “com a sua própria incompetência cósmica para entender ou criar qualquer coisa de novo” (A. Campos), e então, procuram dourar as suas versões da impostura da seriedade. Todo um grande poema na sua língua não pode deixar de produzir um mesmo desastre, por mais gracioso que seja, na língua à qual adrega. Se a tradução de poesia não for criativa, não sabemos o que será, mas certamente ficará pelo caminho. Campos deixava claro que a sua meta era outra, não esse esforço comissionado, e que faz uma mímica por meio de outras palavras, mas a descoberta poética segundo os mesmos sentidos: “é cor, é com, é fracasso de sucesso”. Trata-se de fazer muito mais do captar o reflexo no espelho da língua de chegada, mas montar a armadilha numa língua nova para que, no vazio aberto pelo poema, se descubra a palavra que lhe faz e desfaz o corpo, essa que Herberto chama palavra encharcada, nestes versos do poema inicial de “Do mundo”:

“Abre-me todo a força da palavra encharcada, abre-me através de abdómen e diafragma, os pulmões, os brônquios, traquéia, a glote,
palato, e dentes, língua,
o côncavo da boca: um canto,
a ventania do corpo.


Mas para quem não se entende com estes modos de tão agitada pronúncia, talvez possamos dizer algo parecido, se chamarmos para a conversa, Borges, que numa resposta a Roger Callois, sobre este assunto disse: “... não creio [que seja possível atingir a exactidão verbal numa tradução]. É mais importante atingir a cadência que convenha ao tema. Penso isso, não somente sobre a tradução, mas também sobre a composição. Uma vez que se tenha encontrado o acento justo, nem muito alto nem muito baixo, nem muito enfático, já se tem o poema.”

Lá em cima, uma vez mais, o tradutor executou a sua honesta versão, mas, por mais que contadas as sílabas, por mais breves os versos, o disparo não se fez, antes ficou um tom pastoso, porque lhe falta outro ângulo sobre as coisas. Como um agente de seguros, Serras Pereira, dá a volta ao animal, tira-lhes as medidas, quer aplicar apólice que o garante contra todos os riscos, mas se enche o seu cantil com a saliva, para os testes de ADN, perde-lhe depois o ritmo da respiração, a armação dos ossos subindo e descendo, o ar passando num silvo pela caixa toda. Tudo isto dispensa, na conta de balelas impressionistas. Mas depois é o seu Rimbaud que se fica por uma diluída aguarela. O Rimbaud que este senhor escuta pouco nos encanta. Na verdade, enfada-nos bastante. Não o descobriu, nem se espantou com aquele modo de desempacotar horizontes, não lhe sentiu o arrepio desconhecido, não se comoveu diante dos instantes divinatórios, mas do génio verbal que foi espiando, apenas nos deu um origami em português, uma pavorosa ave exótica que palra com um distinto sotaque, entretendo as ti-tias pela hora do chá. Era vê-las lá no Facebook de Serras Pereira a dar ao fole nos encómios. Em solidariedade, apareceram outros, como sempre muito janotas, e é fácil fazê-los sair da coelheira, tudo com uns ares de enjoo por causa do desordeiro, desse crítico deslavado que saltou para cima da mesa, manchou de lama a toalha e lhes mijou no serviço de chá. Talvez seja um modo de compensar o torpor dos versos de Serras Pereira. “Com malícia e a rir, este miúdo com cabeça de fuso e olhos de um cinzento verde ou azul, deve ter contemplado coisas que só se dignou contar-nos no pedaço que para aí lhe dava”, escreveu Victor Segalen. Mas isso era o Outro. Este que nos serviram, mais parece uma estola com uns pêlos arrancados da cauda daquele, das tantas vezes que lhes fugia, e das coisas que nos conta fica a sensação de um eco tresmalhado, aquilo que um soluço nos diz de uma verdadeira canção bêbeda. E não nos atrai tanto o mistério de perceber onde terá ele achado a sua tão breve medida tão cheia de contrastes, de tensões deslumbrantes, e aquele poder de choque e fascínio, como nos intriga o podre contentamento desta gente emprestando o ouvido a outra oração dos bocejadores.

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