terça-feira, dezembro 25, 2018

Miguel Serras Pereira e a Lurdinhas que nos deu em lugar do Rimbaud (2)


No momento anterior desta nossa charla à volta das traduções de Rimbaud, transcreveu-se a versão final do poema “Larme”, e não aquela que surge na edição “Obra Completa”, da Relógio d’Água, uma variante enviada numa carta para Verlaine, circa 1886, e que não comparece na reunião da plêiade, pelo menos não na que consultámos (que é dos anos 80). Serras Pereira dá a entender que foi marosca do crítico com o fito de induzir em erro o leitor e assim imputar uma pecha à sua tradução do poema. “Há um erro na transcrição da versão que DVP propõe como sendo aquela que eu traduzi: onde o crítico põe "Tel, j'eusse été mauvaise enseigne d'auberge" deve ler-se: ‘effet mauvais pour une enseigne d'auberge’”. Depois ainda nos brinda com uma outra versão do mesmo poema. E, por esta altura, já ninguém se pode queixar de não ter dado com nada no sapatinho.
Assumo que me perdi entre as versões, mas esta troca vem, assim, voltar-nos para uma outra trapalhada na edição portuguesa, uma vez que a versão do poema não é, afinal, a última que o poeta deixou. Quanto ao resto, diz o insigne tradutor que não comenta, e nem eu esperava outra coisa, se quisesse uma resposta em condições talvez tivesse de lhe pagar por isso, e haveria de sair-me a peso de ouro cada palavra do douto tradutor. Mas vamos prosseguir com o que interessa: deixo-vos uma sequência de “glosas” a partir da célebre “Chanson de la plus haute tour”... Versões de Augusto Campos, Wladimir Saldanha e Maria Gabriela Llansol, e só depois, no remate, a fidelíssima tradução de Miguel Serras Pereira, essa sim certificada, e já vamos saber em que moldes.

Chanson de la plus haute Tour

Oisive jeunesse
À tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah! que le temps vienne
Où les cœurs s'éprennent.

Je me suis dit : laisse,
Et qu'on ne te voie :
Et sans la promesse
De plus hautes joies.
Que rien ne t'arrête
Auguste retraite.

J'ai tant fait patience
Qu'à jamais j'oublie;
Craintes et souffrances
Aux cieux sont parties.
Et la soif malsaine
Obscurcit mes veines.

Ainsi la Prairie
À l'oubli livrée,
Grandie, et fleurie
D'encens et d'ivraies,
Au bourdon farouche
De cent sales mouches.

Ah! Mille veuvages
De la si pauvre âme
Qui n'a que l'image
De la Notre-Dame!
Est-ce que l'on prie
La Vierge Marie ?

Oisive jeunesse
À tout asservie,
Par délicatesse
J'ai perdu ma vie.
Ah! que le temps vienne
Où les cœurs s'éprennent.


Augusto de Campos:

Inútil beleza
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah! que venha o instante
Que as almas encante.

Eu me digo: cessa,
Que ninguém te veja:
E sem a promessa
Do que quer que seja.
Não te impeça nada,
Excelsa morada.

De tanta paciência
Para sempre esqueço:
Temor e dolência
Aos céus ofereço,
E a sede sem peias
Me escurece as veias.

Assim esquecidas
Vão-se as Primaveras
Plenas e floridas
De incenso e de heras
Sob as notas foscas
De cem feias moscas

Ah! Mil viuvezas
Da alma que chora
E só tem tristezas
De Nossa Senhora!
Alguém oraria
À Virgem Maria?

Inútil beleza
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.

Ah! que venha o instante
Que as almas encante!


Wladimir Saldanha:

Juventude lesa,
Em tudo sorvida,
Por delicadeza
Eu perdi-me em vida.
Ah! Que o tempo acene,
De um peito perene.

Disse a mim: despreza
E não queiras público
E sem mais promessa
Do mais alto júbilo.
Razão não te susta,
Retirada augusta.

Eu fui quem não cansa,
Não me esqueço ali:
Ânsia e repugnância
Vão aos céus e fim.
E uma sede infrene
Turva a veia, vem-me.

Pradaria assim
Esquecida, vê
Crescer benjoim,
Joio florescer
Ao bordão agreste
− mil moscas em peste.

Ah! Viuvice tanta,
De alma só, que chora
Ante a imagem santa
De Nossa Senhora!
Mas, vai pedir − quem
A Maria, à Virgem?

Juventude lesa,
Em tudo sorvida,
Por delicadeza
Eu perdi-me em vida.
Ah! Que o tempo acene,
De um peito perene!


Maria Gabriela Llansol:

Juventude ociosa
Escrava e submissa,
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Com corações que se apaixonam.

Disse a mim mesmo: abandona,
E que ninguém te veja:
Nem mesmo a promessa
De alegrias mais altas.
Que nada te prenda, ou pare
Sublime retirada.

Dei tantas mostras de paciência
Que tudo eu para sempre olvide;
Temores e dores
Volatizaram-se nos céus.
Mesmo se uma sede doentia
Me obscurece as veias.

Assim o Prado
Deixado ao abandono,
Maturado e enflorido,
De cores-odores e ervas daninhas,
Entregue ao zumbido ensurdecedor
De sem moscas nojentas.

Ah! Mil vezes viúvo
Da trist'alma nua
Sem outra imagem
Que a da Senhora Mãe!
Será que se ora
À Virgem Maria?

Juventude ociosa
Escrava e submissa,
Por delicadeza,
Deixei fugir a minha vida.
Ah!, venha esse tempo
Com corações que se apaixonam.


E, finalmente, o nosso Miguel Serras Pereira:

De ócios jovem presa
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah que o tempo avance
Que encanta os amantes.

Eu disse-me: esquece,
Não sejas ninguém.
E deixa a promessa
De mais altos bens.
Que nada te frustre
O retiro augusto.

Ó viuvezes várias
Da pobre alma agora
Que só tem a imagem
De Nossa Senhora:
Rezar dever-se-ia
À virgem Maria?

Esperei tão paciente
Que para sempre esqueci.
Medo e sofrimento
No céu os perdi.
E uma sede langue
Escurece o meu sangue.

Tal a pradaria
Que o olvido vence,
Crescida e florida
De joios e de incenso,
Ao zoar furibundo
Das moscas imundas.

De ócios jovem presa
A tudo rendida,
Por delicadeza
Perdi minha vida.
Ah que o tempo avance
Que encanta os amantes.



O outro momento revelador nesta troca foi a seguinte explicação que o tradutor resolveu dar, não ao crítico (a esse nunca, nada), mas a um passante:

Digamos, já agora, que, se não compete ao tradutor desfigurar o original, não convém também que, em vez de traduzir, e enquanto tradutor, glose e melhore, penteie ou componha o que, no original, é esboço, ficou inacabado ou surge como "borrão" ou tentativa. E esta recomendação, pá, deve o tradutor tê-la presente, muito em particular, quando traduz boa parte dos poemas (em verso ou prosa) de Rimbaud. Indirectamente, foi o que tentei mostrar indicando acima como traduzi de modo diferente duas versões aproximadas do mesmo poema, mais fruste uma, mais elaborada a outra. Confrontar as duas versões originais de Rimbaud tornará talvez o que aqui digo mais evidente para o leitor. Mas não é este o lugar mais apropriado para continuar esta discussão. Nem para abordar o estatuto de glosas como as de Llansol — e, para alguns textos em verso, também do grande Cesariny — que, retomando motes alheios, são exercícios poéticos que podem revelar-se apaixonantes, mas não são a "tarefa do tradutor", por mais benjaminianamente que a entendamos.

Perante as voltas desta máquina de lavar que arranca da fibra, ao estalo se preciso, qualquer nódoa, e junto vai-se também a cor, o perfume. Já sei que devia observar maior contenção para ir pelo opróbrio abaixo, o ataque pessoal, tenho ouvido dizer, e que confundo as coisas, baralho os níveis, mas ainda estou para ver nesta terra de primas o fim aos territórios das susceptibilidades, vivemos, realmente, no país das sumidades, tudo lhes dá para se erguerem numas tais presunções, iminentíssimos, a estender a mão e o anel para o beijo, que respeitabilidades, e isto em nome do quê?, será por andarem por aí literatossindo, o que dá a esta costureira a confiança para vir dizer-nos que os outros glosam, penteiam e alindam o original, e que ele sim é fiel, não lima as unhas, deixa-lhes borrões, as tentativas dando de mamar aos seus erros, mas os outros “glosam”, pois em vez de buscar simetrias toscas das palavras, tentam dar caça à voz, importar o tom, não ficar pela literalidade, coisa que não percebe este que tem uma pequena indústria de serviços de serração/tradução, que manda abaixo a árvore, lhe salta em cima e com cada movimento do serrote levanta uma poeira que nos seca as narinas, deixa os autores como troncos empilhados, bons para a lareira. Haveria outras imagens mais instrutivas, pode notar-se como os pássaros selvagens não se dão se enfiados numa gaiola, e se virmos como a natureza contrariada congemina o seu próprio cianeto, numa hora estão ali muito tristes, na seguinte estão caídos, coroados das últimas caganitas, e nem mais um pio, patrão. A questão aqui é saber se Serras Pereira acha que Rimbaud assinaria, se reencarnasse neste idioma, a sua proposta de tradução. Porque aquilo que nos deu, não se engane, não parece mais que a canção da marquise mais alta, com uma lurdinhas a estender a roupa e a dar uma de pintassilgo... Se aceitamos que o tradutor claudique aqui ou ali, falhe algumas ligações, não consiga trazer tudo pela própria inconsistência entre as línguas, o esforço aqui passa mais por prender fogo, e as vertigens, os “murmúrios íntimos”... A imagem mais justa até será a de andar com uma vela junto à boca, a soprar e embalá-la, criando certos movimentos de sombras, sem deixar que se apague. Lança-se um teatro, dirige-se a acção, trabalha-se a perfeição dos gestos, a correspondência entre a luz e as sombras dá-nos uma ideia da graciosidade da transposição. A sobre este assunto, nada melhor que relembrar a nota de Herberto que servia de introdução ao “bebedor nocturno” (achando-se hoje no “photomaton & vox”): “Uma pessoa pergunta: e a fidelidade? Não há infidelidades. É que procuro construir o poema português pelo sentido emocional, mental, linguístico que eu tinha, subrepticiamente, ao lê-lo em inglês, francês, italiano ou espanhol. É bizarramente pessoal. Mas não há fidelidade que não o seja. Senão, claro, a ainda mais bizarra fidelidade gramatical que, de tão neutra, não pode ser fidelidade. Alain Bosquet prevenia algures as pessoas contra essa espécie de fidelidade. Não levantava, ele, sérias reservas ao facto de se traduzir um poema húngaro desconhecendo o húngaro, e dizia: faça-se um poema francês (dirigia-se aos poetas franceses). Porque Bosquet só admitia que fossem poetas a praticar a versão de poesia.”
Aí está. Mas talvez Serras Pereira resista ainda, defendendo a sua tradução, o cadáver daquela coisa que em tempos andou em estado selvagem numa outra língua, transferida assim para um zoo nesta. Talvez essa fidelidade lhe pareça muito mais apetecível do que ter uma glosa, um transplante de um órgão vital de um corpo a outro. Daí que rejeite as “glosas”, os “exercícios poéticos”, que podem até ser apaixonantes mas caem fora da “tarefa do tradutor”... E é bom que estejam a tirar notas porque lições destas pagam-se caro.


Aqui, permita-se-me um (talvez dispensável) esclarecimento, e que merece até uma epígrafe própria:

Et le métier d’homme de guerre est une chose abominable et pleine de cicatrices, comme la poésie.
Blaise Cendrars

Como se vê, alguns andam convencidos que se aproveita melhor o nosso tempo escrevendo “peças literárias”, os pelotões dos versos marchando, contos, ensaios desses com todos os apitos, para impressionar a academia, já eu não, e nem vou dizer, como o outro, que prefiro bater, mas talvez que ando nisto mais pelo cavaco, menos pela escaramuça em torno de questões de etiqueta ou outras bagatelas, mas em busca de um “novo estilo de desavença”, até por um gosto de beber o próprio sangue a uma outra temperatura. Vejo bem a dificuldade que se tem hoje de ir até ao fim, não nos ficarmos pelas indirectas, embustes, ambiguidades escusadas... É mais isso (creiam-me ou não, é indiferente) do que esses triunfos publicitários de que se fala, de um desejo de se fazer notar, fazer os tão ardorosos inimigos figadais. Mas inimigos onde? Apontem-me um de entre esses todos que se mostram tão indispostos, trocando de dentes diariamente de tanto os ranger, um que se mostre e seja, realmente, temível, seja pela aplicação dos nervos na análise de um modo capaz de mobilizar a matéria, fritar-nos com uma sentença. Inimigos figadais...? Não estou a ver. Até porque sabemos já que não é ao nível do fígado que a época está no seu melhor. Está longe de ser esse o órgão que dá o tom à pele, e também não se espere muito dos rins ou do coração, não são esses os que vêm à dianteira neste tempo, só umas irritabilidades que se ficam pelas tripas, uns espasmos do ego, e tudo se cura com um cházinho... Não tenho o menor interesse em defender-me da reputação de crápula. Prefiro tomá-la nos braços (coitadinha, estava para ali tão só, sem que ninguém lhe pegasse – afinal, vivemos no tempo das moralidadezinhas, e ninguém está para dar a esses heróis todos um vilão que seja) e dançar até que a marchinha estúpida desta época se fine, a criadagem tenha levantado as mesas, os músicos, extenuados, não sejam capazes de nem mais um nota, e suas senhorias tenham saído aos ziguezagues e tropeções, despedindo-se da maria gloriazinha por meio de algum arrotito.

...

Provavelmente, ainda voltaremos a isto, ainda traremos mais alguns exemplos desta tão higiénica fidelidade com que nos matam, e empalham, ainda viremos com outras flores de plástico desse calhamaço que tinha ganas de ser uma edição histórica mas acabou por se revelar mais outro talho de animais de altíssimo porte, um espectacular exemplo da tentação de alguns editores de fazerem brilharetes servindo-se de mercenários. 
E para concluir, o leitor que leia e nos diga se estes versinhos, lidos em voz alta, vos parecem escritos por Rimbaud:

(...)

Eu disse-me: esquece,
Não sejas ninguém.
E deixa a promessa
De mais altos bens.
Que nada te frustre
O retiro augusto.

Ó viuvezes várias
Da pobre alma agora
Que só tem a imagem
De Nossa Senhora:
Rezar dever-se-ia
À virgem Maria?

Esperei tão paciente
Que para sempre esqueci.
Medo e sofrimento
No céu os perdi.
E uma sede langue
Escurece o meu sangue.

(...)

Se para o leitor isto está bem, então que se dane toda esta inútil discussão. O erro é nosso. Se isto vos nutre, já sabemos que Serras Pereira cumpriu à risca com o que se lhe pedia: serviu merda a moscas imundas.

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