domingo, dezembro 23, 2018

Miguel Serras Pereira e a versão Rambo que nos deu de Rimbaud (1)


O texto que escrevi sobre a "Obra Completa" de Arthur Rimbaud, publicada há alguns meses pela Relógio D'Água, mereceu alguns reparos de Miguel Serras Pereira. Reproduzo o texto por ele publicado no seu mural do Facebook:

RIMBALDIEUSERIES 
Numa recensão crítica, estilística e moralmente problemática, publicada no jornal i de 25-08-2018, e da qual acabo agora de tomar conhecimento, Diogo Vaz Pinto queixa-se da escassa "rebaldaria" que torna, aos seus olhos devotos do "místico em estado selvagem, um "pávido estertor" as traduções de Rimbaud, em parte de João Moita e em menor parte minhas, que a Relógio D'Água este ano editou. Comparando desfavoravelmente — mas sem um único confronto de versões — as traduções agora publicadas com, por exemplo, as de Cesariny, de Pedro José Leal e de Llansol, DVP pronuncia uma extensa e, por vezes, laboriosamente exaltada sentença, que sem remédio as incrimina por revelarem "não poucas vezes […] uma impossibilidade de acompanhar o poeta na sua furiosa dispersão", e porque "acabam por produzir um efeito de redução e contenção de Rimbaud". Acresce que "[e]mbora as imagens sobrevivam, e vocabularmente a tradução seja fidelíssima à turbulência original, por delicadeza, os tradutores vão perdendo as vitais sinestesias do poeta. A prosódia tantas vezes mostra-se coxa, os versos são cascas, casulos de que a borboleta já saiu. […] Cai em saco roto todo o incitamento ao tal desregramento dos sentidos, e temos uma poesia que nem dá sinais de luta no esforço de segurar a beleza estética [sic] do original".
Dito isto, resta, uma vez que DVP não o faz a não ser através de um único exemplo tangencial, ainda que esforçadamente introduzido a martelo, como que no exercício distintivo, diria Cesariny que cito de memória, de qualquer "adepto das comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais sensíveis da matéria", resta, dito isto, dizia eu, fornecer ao leitor uma amostra que lhe permita apreciar, ainda que tão só liminarmente, a adequação da severidade justiceira do cronista. E, assim, como não tenho procuração do meu amigo João Moita que me consinta seleccionar versões da sua lavra, aqui deixo, para ilustrar o métier hermenêutico de DVP, a tradução que pude de um dos sonetos que publiquei na edição da Relógio D'Água.
Dito isto, resta, uma vez que DVP não o faz a não ser através de um único exemplo tangencial, ainda que esforçadamente introduzido a martelo, como que no exercício distintivo, diria Cesariny que cito de memória, de qualquer "adepto das comunidades práticas de pregar com pregos as partes mais sensíveis da matéria", resta, dito isto, dizia eu, fornecer ao leitor uma amostra que lhe permita apreciar, ainda que tão só liminarmente, a adequação da severidade justiceira do cronista. E, assim, como não tenho procuração do meu amigo João Moita que me consinta seleccionar versões da sua lavra, aqui deixo, para ilustrar o métier hermenêutico de DVP, a tradução que pude de um dos sonetos que publiquei na edição da Relógio D'Água.

Vénus Anadiómena 
Como de um caixão verde de lata, uma cabeça
De mulher, juba escura muito engordurada,
De uma banheira velha emerge, lerda e peca,
Crivada de remendos mal-alinhavados; 
O colo gordo e pardo, as grandes omoplatas
Saídas; o dorso curto qual eixo sinuoso;
Depois os rins redondos, que ensaiam como um voo;
As banhas sob a pele em fatias acamadas; 
Um tanto rubra, a espinha; e um gosto em tudo insiste
Estranhamente horrível; solicitam a vista
Indícios singulares a examinar à lupa… 
Nos rins gravadas — Clara Venus — duas palavras;
E alça-lhe o corpo todo a sua grande garupa
Medonhamente bela com o ânus em chaga.




Depois, e uma vez que lhe tinha escapado o texto escrito pelo Ricardo Norte, dei-lho a ler, tendo o excelentíssimo tradutor despachado as objecções apontadas nessa segunda crítica de forma telegráfica: 


Como não falo com DVP, deixo aqui duas ou três observações sobre o texto que ele aqui postou, "Rimbaud na teia dos mercadores". 1. as "mazelas" da alma podem significar, justamente, as suas "imperfeições" ou pecados, etc. 2. O "galo gaulês" seria uma solução possível, mas que rejeitei porque "galo" e "gaulês" têm o mesmo étimo — o que não se passa com "coq" e "gaulois". 3. Os reparos sobre a ventura ou felicidade e a magia passam-me ao lado, tanto mais que a minha tradução é perfeitamente compatível com o sentido que o crítico sustenta dever ler-se na passagem em causa.


Posto isto, segue a primeira parte da tréplica.

Miguel Serras Pereira há de ser, assim o dizem, um excelente tradutor de livros técnicos, ninguém lhe tira lá a sua cultura, bagagem literária, mesmo o calo de tradutor de giro editorial que já pega a frase ou o verso pelo puxador, e abre de uma língua à outra, faz o seu certificadíssimo contrabando de fronteiras, mas na conta da corrente de ar, de algo mais do que essa coisa de ouvir com um copo na parede, e ditar em simultâneo - porque nisso, não há dúvida, presta um bom serviço, e nem se perde demasiado (talvez não se fizesse a guerra, fosse a terceira mundial ou uma rixa nalgum bairro literário, por causa de um desacerto mais absurdo) -, mas disto não se faça a distância enorme de vir dizer que tem tantas unhas que faça agora, assim às três pancadas, o que ao longo das últimas décadas de tão poucos se aproveitou, essa recriação de Rimbaud que não fosse dar dele só a versão grunhida de um Rambo. Mas sim, admitamos, que não lhe vamos dar aulas de francês, apenas apanhar na curva essa mentalidade maliciosa de que trata com analfabetos, contando sempre mais do que um pouco com a desmemória e a desatenção dos outros. O que é preciso é contar com um terceiro aqui, alguém que demonstre realmente o gosto de vir comparar soluções, ver o que salta, passa e o que cai entre equações possíveis, mais imaginosas umas, vibrantes, mais do lado do embevecimento e, sim, de um gosto pela rebaldaria, esteja esta ao nível dos processos de sinestesia ou do gosto exaltante de tratar a língua como quem tomasse frutos de toda a latitude, os rasgasse e se enchesse, redigindo o relatório todo lambuzado, usando a cola no queixo para selar o envelope. Aqui também o Serras Pereira se poderá vir queixar da corrupção estilística e, quem sabe, até moral (pois sim, era uma questão de tempo até chegarmos ao que interessa: à imoralidade da crítica) também deste texto, mas do nosso lado persiste a desconfiança sobre este método de um tradutor que terá acorrentado nalgum sótão um pobre bardo que talvez até saiba umas coisas do beletrismo, mas que, com toda a afinação, não chegou a dar-se conta de que ser poeta não passa tanto por ser recrutador de consoantes, e nem alinhador de pelotões de quatro, cinco, seis, oito, dez versos. E que não é por nos vir com palavras menos lascadas pelo uso, um tantinho mais rebuscadas, não é com puxadinhos barrocos, ornamentos nem quinquilharias alinhadas, tapando outras faltas, nem com as senhas todas de almoço para se servir no palacete do Parnaso que alcança o Outro lá no seu avanço entre todas as estradas, esse que soube fundir no modelo antigo o desastre da sua intuição moderna, porque, no fim, para o que aqui nos traz, ou se tem ou não ouvido, chega-se lá ou fica-se de joelhos, numa lamacenta incompreensão da tremenda força que os versos originais mantêm, exactamente por se furtarem ao deslustre de aproximações repentistas. E se o profissionalismo de Serras Pereira podia ser uma boa arma, a ingenuidade nenhuma com que vem dizer que rejeitou a solução de galo gaulês porque as duas palavras têm o mesmo étimo, portanto, uma basta para travar a saia, que a outra logo lhe sairá debaixo, dizer-nos que mazelas da alma ou pecados é o mesmo..., ah pois, porque se numa hora a coisa é muito técnica, na outra dá para vir com caprichos de luminotécnico, e com gambiarras, assim como assim, a tradução já foi paga, mais um calhamaço para trás das costas, junto ao molhe, e fica também no currículo, Rimbaud: tumba!, mas aqui, e havendo interesse por estas coisas, o que contamos é que seja o leitor a dirimir, o que vier agora ou mais tarde, o que se arrelie com estas coisas, e compare versões pelo gosto de escrutar longe lá essas variações comovendo-se ou querelando umas nos braços das outras, essas que nos dizem quem sabe de música e quem vem para aí com botas, arrastando a lama dos juízos que, estando adequados, certos para outras ligas - se o que interessa a um escriba é fazer-se entender -, já não cabem quando a língua é atiçada toda ela, levantada aos ombros, como uma cobra imensa, e produz um saboroso desentendimento... E cem feias moscas podem encher-nos a boca, ser a estridência ou o apuro, obter-se com todas elas um maior rigor do que aquele alcançado por uma mosquinha da fruta literata, servil e meio morta, feliz de se refastelar no seu quinhão de bosta/ seca.
Mas vamos a exemplos. Eis o poema “Larme” na sua versão original: 

Loin des oiseaux, des troupeaux, des villageoises,
Je buvais, accroupi dans quelque bruyère
Entourée de tendres bois de noisetiers,
Par un brouillard d'après-midi tiède et vert. 

Que pouvais-je boire dans cette jeune Oise,
Ormeaux sans voix, gazon sans fleurs, ciel couvert.
Que tirais-je à la gourde de colocase?
Quelque liqueur d'or, fade et qui fait suer. 

Tel, j'eusse été mauvaise enseigne d'auberge.
Puis l'orage changea le ciel, jusqu'au soir.
Ce furent des pays noirs, des lacs, des perches,
Des colonnades sous la nuit bleue, des gares. 

L'eau des bois se perdait sur des sables vierges,
Le vent, du ciel, jetait des glaçons aux mares...
Or ! tel qu'un pêcheur d'or ou de coquillages,
Dire que je n'ai pas eu souci de boire!

E agora vejam-se, lado a lado, a versão de MSP e a versão de Maria Gabriela Llansol: 


 

A ênfase dada por Rimbaud, e mantida por Llansol na segunda estrofe, ao que poderia beber, ao que há a extrair dessa garrafa, desaparece na tradução de MSP, que desde o começo abicha uma sintaxe onde as acções verbais são alteradas, castigando a clareza do verso. Repare-se logo no segundo verso: “que bebia eu, de joelhos, no chão dessa charneca”. Ao alterar a afirmação “eu beberricava agachado...” para uma interrogação, arrasta uma frase ao longo de duas estrofes sem a expressividade, o impacto do original, perde-se a límpida e surpreendente superfície, e ficam os enfeites numa vidraça de berlfurinheiro. Na segunda estrofe, o último verso e a ligação com o primeiro da terceira estrofe criam uma confusão de tal ordem... Oiçam-se os passos a esta trôpega centopeia: “Que licor de ouro de fazer suar// de tabuleta de taberna enfeite errado.” Compare-se com a tradução de Llansol (“eu seria uma má tabuleta de taberna”) e a pergunta que fica é: para onde foi o sujeito na tradução de MSP? Será que é o licor? Na leitura do profissionalíssimo tradutor, deve ser essa zurrapa de fazer suar de tabuleta de taberna enfeite errado... Que pessegada! E que tal para amostra do rastro que deixam os cascos de Serras Pereira ao lidar com “as partes mais sensíveis da matéria”? Será isto o suficiente? Não, temo bem que não chegue. Felizmente, MSP deu-nos muito por onde ir no que toca a meter pregos em partes talvez não tão sensíveis assim. Mas se teremos oportunidade de comparar outras elaborações com os aromas desta língua, vai ficando claro que, enquanto perfumista, Serras Pereira entende mais do álcool do que de outra coisa, e fica sempre a faltar esse golpe com que se tira uma flor de entre os escalrachos e silvados que lhe obstruíam o acesso. Para já, diante dessa amostra, deixemos vincado a grau em que se perde a força e até intelegibilidade dos versos por meio de uma renda sem sentido. Quase parece que em vez de traduzir, Serras Pereira revela maior perícia para aldrabar o leitor, colorindo um recanto, para que o resto passe escondido, obscurecido. De resto, cometemos antes uma injustiça em misturar a farinha de dois sacos, pois as traduções de João Moita mostram-se sempre mais cuidadosas, mais competentes, não desfeiam mesmo se só conseguem safar parcialmente os efeitos e sentido, e não embalam numa vertigem de “modernismo estilístico”, recurso que parece preceder a própria escrita, com MSP a ver-se livre da pontuação, quase ausente nas suas versões, e turvar as águas  na incapacidade de nos dar uma ideia da sua real profundidade, assim, o seu Rambo mete-se pela selva numa fúria que dá para filme de acção, mas se mostra tosco no tocante a um ofício mais delicado, que exige sobretudo uma fabulosa paciência. Ele cria uma aparência de complexidade pela inversão dos pontos fortes dos versos, estiolando as notas, os arpejos do poema, os quais soam mais intensamente na tradução de Llansol.

 

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