segunda-feira, novembro 19, 2018

Poesia e combate


Não sei se a história tem fundo verdadeiro ou se é zunzum das moscas que vivem de volta das lendas, mas para o caso tanto faz, visto que é só um fósforo para largar fogo nisto. Ora, ouvi ou li algures que o entusiasmo do Bruce Lee com as artes marciais foi uma descarga dessas que nos fritam o juízo, encantou-se da ideia de resolver a vida ao estalo, e lá foi ele ser gauche na vida… Impaciente, não trepou um muro ou alguma árvore só para espreitar as aulas nalgum dojo, mas saltou fora da infância em andamento, estaria na flor chavala da vida e arranjou-se com um parque de estacionamento movimentado, uma praça qualquer onde a miudagem reunia, elas a ver se descosiam os olhos aos rapazes, eles a desenharem aquele exagerado jeito macho, a falar grosso, escarrar fininho entre os dentes, e ensaiar uns golpes nas fuças do vento. O Bruce nem molhou o pé a ver a temperatura. Foi logo numas grosserias, a dizer onde lhes tinha visto as mães, coisas dessas feitas para desaustinar, insultos dos de fazer um santo levantar os punhos, e tudo para ganhar logo ali um adversário. Nem ia pelos mais franganitos, mas apontava era aos matulões que lhe embraivam a inspiração. Parece que andou ainda uma temporada valente nisso. Lá saía cedo, roto, com a cara nuns desarranjos expressionistas, e da rua fazia uma arena, armando zaragatas, a enfiar uns, comer outros, sentir as partes frágeis da matéria no balanço face às outras. Enrijeceu assim e, já sem cerimónias com a violência, lá foi depois aparando a coisa, deixando o fervor dessas sessões de desancagem pela disciplina dos golpes e traumas de que o adversário recebe notificação ao acordar no hospital. 
Este preâmbulo enfarruscado é para ganhar balanço e chegar ao ponto que aqui nos interessa. E aqui, depois do Bruce Lee, entra toda airosa, com a maior das naturalidades a Maria Gabriela Llansol, para nos lembrar que “se a maioria dos poetas visse a poesia como drama e combate, não fazia poesia”. E ainda nos adiantou, numa demagogia lá com os da seita, posteriormente lavrada a escrito, que está bom de ver como a “noção habitual de poético é terrível, porque é sentimental”. Anda aí uma gente nuns agastes líricos, numas enfatuações de tal ordem, e para quê? Pois, para muito pouco, que vai-se a ver e, tirando uns versinhos sem querer, que este ano saem a este, no outro àquele, muito pouco mais faz luzir a lusa língua. Até lhe dá mais para trazer os cantos torcidos, com uma vontade de rir desta tristeza saloia que não ofende mundo nenhum. Diz-se muito para aí que andam negros os tempos, tudo ameaça trajar de viúva, volta e meia os versos ensaiam umas virgindades muito pudicas, desfalece-se, soltam-se uns ais, mas, no geral, segue a mesma cega-rega, e acabamos no de sempre: “toda essa merda douta que nos cobre há séculos cagada pelos nossos escravos”. Nem a Oeste, nem a Leste, nada de novo. A Sul ainda andam a tentar resolver com baldes o naufrágio, a Norte há sinais, certos, esperançosos, curtos, cronometrados. Coimbra foi pelo ralo e mal se ouviu um arroto. Lisboa é esta charanga que não aquece nem arrefece. Dá a sensação que se acabasse a cerveja, faltasse o vinho e o resto ficasse mais caro, a produção poética, os lançamentos, as leituras públicas, toda essa correria acabava-se a jogar canasta no mais ralo jardim. Antes o Cesariny que, chegando ao café, pedia o seu leitinho. Depois ia-se a ver a rota do barco dele, e nenhuma, fosse com as mãos no bidé, fosse com a cabeça no mar, levava mais fulgor ébrio que a dele. Poesia como drama, combate? Vira a boca para lá! Isto anda tudo mais feliz a coçar a falta dos tomates, ou nessas galhardias de grandes cavaleiros da ordem ética, pelas costas é tudo uns São Jorges a dar morte a terríveis dragões. Se o verso arreganha a dentuça, logo as damas se enchem de uns ares de repulsa, só a ideia é já prepostera, um absurdo. 
E lembrei-me disto diante dos tremeliques a que se deu um dos nossos mais distintos tarecos de salão, o emérito Luís Quintais, que aqui há umas horas vi passar numa filinha de carpideiras por um poeta morto. E não interessa vir agora desassossegar o espírito nem a memória do homem, mas o cadáver fresco logo serviu ao outro para vir implicar com “eles” – sim, e se não sabem, eu dou-vos a notícia: anda por aí um bando, um bildeberg da poesia que tem mão nisto tudo. Também se reúnem em Cascais para decidir quem é sobrevalorizado e quem é apagado, silenciado, atirado à fossa sem nenhuma consideração. Pois. E então veio este comedor de madalenas largar a sua lagrimita no chá pelo poeta que a morte levou sem cerimónias, quando andam para aí outros tão lembrados, exaltados, e assim. Mas se lhe pedi que concretizasse, que nos desse os nomes, nem se escusou, fingiu que não tinha indicador, e pôs-se como fazem os miúdos a esticar o médio. Olha que bem, Luisinho. Depois ainda se lembrou, a modos de insulto, de chamar-me “fascista”. E é isto o que se pode esperar das raivinhas que mais cedo coram do que esticam a língua, fazem dela uma forca. Não estava à espera de um insulto camiliano (“ilustre paspalhão” servia, “pasmo dos orbes, nata da estupidez, álcool dos parvos” – disto, honrado, até eu bebia), muito menos cenas de tiro, cabeças rachadas, convites para duelos, mas “fascista”! Porra, ó Quintais, não se arranja melhor? É o que temos para nosso contentamento, e de um dos expoentes da poesia portuguesa deste século XXI! (Sim, é o que dizem, e eu só não acredito porque não me regalo com fuminhos de sacristia.) Prefiro tratá-lo mesmo pelo emplastro dos versos que sei que é, a arrastar aquele luto por ter morto uma formiga quando tinha quatro anos. Não é nenhum Bruce Lee. Nem dá para lhe chamar um idiota piramidal, mas só um nostradamus de tenda, a profetizar gripes das aves e pragas de mosquitos em Alcoitão. Este, que no seu trote raros anos deixa em branco, não deixa às gavetas nem uns ossos dos tempos de franguinho, até nisso põe laço, nesse pobre mundo com dois metros em redondo, lá reúne os gansos e toca de os encher de antibióticos. Mas depois, não lhe bastando o tijolo na Assírio mailas sucessivas adendas, ainda se exaspera com os críticos, que diz que numa hora não existem e na outra são simplesmente imprestáveis. Aqui há uns anos teve um ensarilhamento de cornos até com uma certa piada. Mal agradecido com o José Mário, puxou-lhe as orelhas depois deste só lhe ter servido um daqueles filetezinhos de prosa com vista para um céu de quatro estrelas meio despegadas. Veio a arraial por uma vez, rasgou a camisa, lançou a honra que o outro nunca teve na lama, ainda o acusou de não fazer mais nas críticas que chegar um espelhinho de bolso às fuças dos poetas, parafraseando-lhes os versos em lugar de fazer crítica, e contando com a vaidade deles para não ser chamado à liça pela patranha, por picar o ponto e tugir umas apreciações desmioladas. Como competia ao críticoxo, logo veio pedir mil desculpas, que lhe faltava o espaço, que o Balsemão não deixava, que só tinha as migalhas que caiam da mesa, que nessa semana tinha a senzala em obras… O de sempre. É curioso como os nossos literatos congeminaram em laboratório este galináceo para lhes fazer o jeitinho ao fim-de-semana, mas depois se queixam, de tempos a tempos apertam com ele; uns beliscões, deixam-no a côdea e água, até sacarem a crítica com todas as estrelas a que têm direito. Do que me lembro, o Quintais veio todo galifão, até mandou que o Zé metesse as estrelas no cu. E aí parece-me que esteve bem, pois se foi de lá que elas saíram era justo que para lá voltassem. Suspeito é que bastava que tivessem sido as cinco, e se em vez de um filete fosse uma página inteira, já o Zé era um crítico honradíssimo, a fazer das tripas coração, bater-se com o patronato, “eles” todos, em nome dos nossos Quixotes versilibristas. E já que o excurso aqui nos trouxe, merece também a pena lembrar de outra das vezes em que o Zé andou aí a deitar lágrimas por um olho negro, quando também o Bruno Vieira Amaral, seu superior, mais graduado na ordem escrava dos literatuços, enrolou o jornal e lhe apertou o focinho por uma crítica que não trazia a camisa dentro das calças, nem botões de punho ou gravata na hora de se lhe dirigir. Mais uma vez provou-se que é preciso chegar-lhes a roupa ao pêlo e dar indicações muito claras se se quer a coisa bem feita. Desde aí, dois e dois, quando se contam estrelas, dá cinco. Mas nem assim se satisfazem. Nunca foi bonito repeti-lo, mas sempre foi notório que em Portugal a vida literária se ficou pelo projecto... À última a malta diz que não pode, dá-lhes para a indisposição, são achacados por todo o tipo de maleitas, ficam esquisitos, não vão se aquele for, se for a um domingo não dá porque o clube joga, e, depois de ajustes, o que fica é mesmo uma coisa, uma gente que escreve, e uma mais desfalcada gente que diz que a lê. E no que toca aos versos, porque o primeiro é dado pelos deuses, não faltam os anjinhos para prosseguir a obra. Babam-se. Dá nisto, esta trupe que, ou anda em excursão pelo país ou mesmo, atrevidamente, lá fora (e por conta de uns bordados!) ou temos o caldo entornado. Aborrecem-se e lá volta a conversa de que não há crítica nos jornais que não compram, nesses que mesmo se lêem é às escondidas, e por mera “curiosidade mórbida”. Uma gente sem urgência de espécie nenhuma, depois tão recomplicada, tão bielo cosida, tão ininteligível... Quantos críticos seriam precisos para saciar tanto poeta tão satisfeito consigo? Diz o Quintais que andam para aí tantos tão sobrevalorizados pela crítica... E era tão bom se nos pudesse dizer quais. Mas depois também me lembro da vez em que o vi tomar para si as funções do crítico, como esteve lá na apresentação de uma dessas coqueluches que hoje são titulares nas guadalajaras enquanto ele fica a aquecer o banco. Ainda me lembro como a propósito da Fonseca Santos ele era Melville para aqui, Whitman para ali, uns atrás dos outros, fez a chamada, correu os círculos infernais, e não faltou nenhum dos preferidos do diabo, tudo invocado em nome daquela coisinha doce, e na sala inteira não houve quem não sorrisse, se indispusesse ou jogasse aos pés da miúda que, afinal, estava ali sorrindo-se, mas vestia o Camões como se fosse Prada. Isto tudo tem uma graça danada. E triste mesmo é ver como ninguém se ri. Nem sabem como (...ter lavados e muitos dentes brancos à mostra). Em vez de corridas medievais, grandes bulhas, e uns loucos a ameaçar moinhos de todo o tamanho, encher à fuça aos gigantes, andamos nisto, muito contristados porque todos faltam à chamada (faltas tu, faltas tu...)... e a vida literária são restos, é o que a deixam ser. Esta vil tristeza. Muito séria, muito convencida da sua importância. O lado suculento fica de fora, depois só resta para distracção ver passar o cortejo fúnebre em honra de uma coisa que nem chegou a ser.

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