sexta-feira, agosto 03, 2018



É ainda a dor esmagada que vos prende
Que em nós torna saudável a loucura. 
Ruy Cinatti

Quando já não importe nem nos oiça a voz o tempo que temos, no sangue frio se instale essa distância segredada, tão perto, débeis flores submersas e nós sempre no mesmo passo, derramados como água no chão. Abandonada a subtileza, vem uma elegância desgraçada, encantados só como perdidos, e o ar que treme ouvindo algum ditado. Porque os caminhos são longos, fazes-te também viajante de silêncios e águas perdidas, enquanto a luz da tarde fere, inclina as sílabas, o corpo serve de mastro, uns ossos pobres assentes na simples mesa. A mão treme da reescrita do seu gasto provérbio. Já a boca fede a verso, fechas o caderno, trazes só a garrafa de virar marés. Metido com as ruas, atrás de um hálito de música ou de sonho que faça mais por esta vulnerável coisa de carne. Castelos doidos erguidos à pressa antes que a tarde se acabe. A escala que aproveitamos dos cafés que já meio inventamos ou trazemos lidos, portos ausentes destas cidades que sobram de um tempo sem vontade. E assim ainda por vezes alguém há que nos olha e desfaz nas tantas personagens a que servimos de abrigo. Toda a fauna dos banidos e dos desamparados, marcados pelos vestígios de outros mundos, os aborígenes no fundo de nós. Como o sol acende os ombros deste aguarelista alcoólico, como depois ele serve a luz na sua cópia de pássaros e de aromas, mexendo os lábios como se estivesse a ler o passado. Estamos do lado mais frágil, fechados com um público que se fixou na sala depois do espectáculo ter há muito terminado.

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