sábado, julho 14, 2018


Quando a memória começa a fazer efeito, retiras as tuas porcarias de caixas (a herança que deixaste de ti a ti próprio) e levantas essa âncora de restos para regressares à malha empedrada dos caminhos. A voz lenta que te envergonha sossega enfim quando o sol se cala e o céu se abandona a uns astros cegos. Afundas-te nuns bolsos tristes entre ruas num recorte sonâmbulo onde os cães derrubam pequenos castelos de lixo ao passo que o vento se abre em goelas de lata. No pátio de uma escola abandonada, sem rumo no ar, um cheiro de lembrança torna-se enjoativo e cansa. A fonte, tenteante, repete um som de pedra, o mar vazio que no escuro te embala. Ao fundo, a luz dos antigos portos treme do comércio onde o teu erro há-de encontrar mil ecos. Vozes submersas, suaves, e o dilacerado convívio desta corte vagabunda. Um teatro rouco que sempre te acolhe e te oferece um papel a uma hora em que nada preserva já intimidade. Asilados em cafés, vivemos e morremos mortes e vidas de outros, histórias tão sem destino, tudo o que mais nos expõe como alvos fáceis para o esquecimento. Aí, bebemos e vociferamos enquanto a morte não alcança a nossa idade nem apaga estes sinais. Velhas sombras de canções atravessam-nos o sangue. Assim, a meio coração, revejo-te por instantes. Um calor delicado enquanto procuro o teu rosto, o perfume esforçado e o grão da voz, essa paz que me diz que estás bem, que tudo ficou melhor depois de mim. Oiço-a como se enterrasse uma pedra na carne, e estimo os dias que me levará para desfazê-la em cinza. A dose perfeita cambaleando no sangue enquanto a dor canta entre uns passos distraídos.

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