terça-feira, julho 31, 2018


Lisboa é ainda o pior dos séculos. Ensinou-te, assim mesmo, o andar ágil dos vadios de antigamente, este ritmo seguindo ileso entre as notas sujas que o vento arranca a cordas feridas. Algum café e a sua vulgar eternidade onde sobram figuras de recortar entre a sede e o tédio. Do mesmo prato comem deuses, homens e bestas, numa intimidade incrível. Sombriamente debruçados, reproduzimos o morse burilado nestas mesas. E nalgum canto soluça um acordeão que conduz uns gestos cegos e acenos ao sinalizarmos um perfume solitário de não se sabe quem. Truque das obscenas donzelas que nos puxam para este ballet parado entre o amor e o desdém: juras nocturnas que a manhã não cobre, a vida secreta que imploramos. Tens a tua cercada. Mas, aqui, a corte é coisa para levar entre meses, anos, mesmo décadas. Ensinas as sombras a puxar-lhe os fios do vestido, revelar-te mais desse contorno que vens copiando à mão: o desenho lento da boca, lábios enegrecidos de tanto discutir preços, e aqueles dois olhos claros que te parecem às vezes frios, cobrindo-se já de formigas. O mundo tem-te aí de castigo e ouves como chove ainda na tua infância, e um vento sem direcção te devolve, passados anos, ecos já mortos. Recolhes os papéis e tomas caminho. A luz gelada dos candeeiros recorta uns vultos contra fundos esbatidos. Trazes a voz uns passos mais atrás, a maltratar uma canção enquanto inventa ruas e te empurra para debaixo das arcadas onde os capitães do fim reerguem o seu hotel de grilos e constelações. De regresso vens a estudar as janelas, sinais de presença e do mais. (Há horas no mundo que pertencem a tão poucos, a esta raça infalível, àqueles de nós que já não somos apenas os últimos dos últimos mas os primeiros de um por vir.) Procuras as chaves, encontras e abres a doce cela onde, enfim, vens bater com os ossos. Teu quarto minúsculo, a cada noite mais estranho e inclinado tudo chegado à tua enorme janela rasgada. Aqui e ali, moscas e astros poisando entre os versos do imenso poema que cobre estas paredes onde os sonhos deixaram as unhas e bizarros abecedários com raízes fundas que trepam florescem e as estalam abrindo passagem.

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