É inútil que durmas se já não achas no sono esse lado para que te viras quando suspira a ausência. Procuras assim no próprio sangue algum corpo doce e clandestino que te ampare a cabeça. O amanhecer rompe com os seus ritos impiedosos como formigas sobre um grilo inerte. Com a barba, o rosto inteiro por fazer, trazes já semanas sem cortar a vista no espelho. Levantas as roupas mudas do chão e tomas balanço antes de caíres no vento. Uma espécie de fé, essa cabeça baixa de quem faz seu um destino qualquer, leva fundo as mãos nos bolsos e acha dons. Essa frieza terna quando as ruas te cansaram já e achas certa graça só de encher os olhos de gente, apalpar-lhes de leve as intimidades. Pontual como os desesperados, entras na pequena e miserável capela atulhada de santos em cacos e ilustrações beatas que, dos sucessivos restauros, saíram com bigodinhos e cornos. Os anjos, desmoralizados, catam piolhos uns aos outros aos pés do altar onde as aranhas conduzem os seus sacrifícios. Fazes o sinal da cruz e segues com estranhos gestos inventados, acendes um cigarro e ajoelhas entre as cinzas, comovido, ainda sem teres motivo. A luz entra também cheia de cuidados e desprende uma recordação, vendo-a desabrochar e morrer vezes sem conta. O peso de um céu inútil resvala enfim desses ombros cansados para as mãos, e cada gesto que se segue tem a doçura de uma admirável insubordinação.
segunda-feira, julho 30, 2018
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