terça-feira, junho 19, 2018


De cada recomeço, entre cada fracasso buscamos a cintilação, do mesmo modo que quem passa a noite espiando as grades sabe como há "um farol luzindo em cada cela", de tudo o que se encerra fatalmente, ao fechar-se "a porta das viagens", há entre os condenados aqueles que saem livres sustendo "contra o peito o cadáver cambiante de uma lua", aí, entre os ecos escarpados que nos trazem as diferentes fases do nosso nome, oiço "uma batida muda atrás de algo que sumiu na escuridão", súbito tudo fica atento, o silêncio não anda longe, tem uma passada paralisante, inigualável, tudo perde a força, os seres e as coisas desatam-se da sua função, comem com o vento, afundam o rosto, apagam-no nalguma poça como quem quisesse criar o céu sem a coragem de enfrentá-lo directamente, e é isto, no vínculo com a morte, o seu reflexo noutro espírito, tiro tudo o que posso, um pouco dessa carne de anjo morto, lá, onde o vento já não volta, onde um eco depôs os ossos, e só um rumor venenoso persiste há uns séculos, em sinal desta ressaca encantatória. 
O idioma acaba comigo, extenua-me, então dou um passo fora, e outra língua começa a usar de sentido, inofensiva primeiro, iletrada, mas se formos fiéis aos desastres, ao modo como nos cercam, é-se convocado, o acaso venta, cada vez mais subo num corte a meio do caminho, pouso nele a cabeça como se esta me rolasse dos ombros, a sua estação no limite do mapa, desactivada, vagões e escolhos desfiando ao longo de carris sem regresso, serve-me bem, e peço o pouco, o grão impuro ferindo o equilíbrio das coisas, gole ganhando o gosto a outros sentidos com a sua duração na boca, dias, sigo o fio tenso que puxa do segredo certas visões, uma brisa soprando no fole das miragens, exilo-me quietamente, dou por mim entre esses que a si mesmos sobrevivem, pouco acima do ombro, cada um trás o astro azedo de que tira orientações, e sempre que o medo hasteia a sua flor, de cor gasta, sem perfume, suando só, lá estamos aparelhando as nossas naus, e tudo age inutilmente, um fogo frio mexe-nos o sangue, é aqui que encalham as paisagens, a roupa quente é reunida, meu meio corpo, meu copo que a tempestade falha, nem uma gota cai nele, e sentimos chegar a nossa vez, já nos vamos despedindo desta terra amarga, segurando um pedaço do barro aquecido, vermelho, sobre o qual o sol rasteja alongando as sombras, enquanto elas desenterram corpos à sua medida.

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