quinta-feira, fevereiro 15, 2018

“Canícula” de Daniel Jonas, recensão crítica de João Oliveira Duarte


[Publicado originalmente na Colóquio Letras, n.º 197]

Falando sobre a “perda da auréola” por parte do poeta – que vive, doravante, numa época em que se verifica a “impossibilidade de legar o nome à posteridade”[i] –, Manuel de Freitas confere a este uma espécie de última vocação: perdendo a auréola, de forma significativa, enquanto saltitava, “o poeta (sem maiúscula) extrai riqueza e sentido da penúria, «associando-se» a um olhar deliberadamente «pobre»”[ii]. Em causa, neste olhar, está também, mas não só, uma cesura entre o poeta e o seu tempo, como se, depois de Baudelaire, o lugar do poeta fosse infinitamente problemático e ele se encontrasse obrigado a dar conta desse mal-estar, mesmo quando o denega.
Há uma grande diferença entre este “olhar deliberadamente pobre” e a exuberância que a poesia de Daniel Jonas tanta vez demonstra, ao ponto de, numa entrevista recente, esboçar uma crítica a um gesto “neo-neo-realista” que traz para o poema o «táxi», o «cigarro», o «bar»[iii]. O que torna tanto mais interessante, exactamente por causa dessa crítica, que este recente livro de Daniel Jonas retome uma tradição da qual parecia afastado ou à qual seria, em última análise, estranho: a tradição poética que toma a cidade enquanto objecto – e que faça chegar alguma coisa a um campo de investigação que parecia esgotado.São vários os lugares, na sua obra anterior, onde figuras míticas ou bíblicas são convocadas. A título de exemplo, podemos referir a forte presença da herança clássica, tanto grega quanto romana, em Sonótono – mas também John Milton, traduzido por Daniel Jonas, é aí explicitamente convocado –, a presença, de caracter “confessional”, da história bíblica de Jonas em (“Do ventre da baleia ergui meu grito:/ Senhor! (dizer teu nome é bom),/ Em fé, em fé o digo, mesmo com / um coração pesado e contrito/ que és tudo verdade e não mito (…)”[iv] ou mesmo a convocação, também em , da figura de Jó. Apesar de a história bíblica de Jonas também surgir em Canícula, de forma não explícita (“A casa é o ventre do grande cetáceo/ e eu o insignificante arpoador/ acupunctor de imenso/ lombo nórdico, mínima paisagem/ na acumulação dos mares” (13), as figuras com maior predominância em são, por um lado, Sísifo, cuja tradição literária, mas não só, é convocada e, por outro, a história bíblica de Isaac e Abraão, em que este último oferece o filho a Deus em holocausto como prova de fé (num sacrifício que nunca o chegou a ser).
De forma implícita (“eu suo a Bica…/ vou joeirando a água da fronte/ com o pano supino de dedos” (19) ou expressamente convocado (“Sísifo subindo S. Paulo/ chorando o vinagre da agonia” (24), Sísifo comparece no mais longo poema e aquele que, de certa forma, marca o tom de Canícula.
“É então quando ascendo ao topo do turistavindo do sopé de mim e da tardeque me alcandoro por momentos na
realização de Sísifochorando sobre o seu Evereste
de postal” (44)É interessante sublinhar o uso do gerúndio, espalhado um pouco por todo o poema – “Vou subindo vagaroso/ vou escalando a custo rumo a todo o lado” (44), logo no início, repetindo pouco depois, “Vou subindo vagaroso./ Vou subindo a contragolpe do sol” (45) e, por fim, conferindo-lhe uma ligeira modificação “vou subindo por mim mesmo/ cantarolando de mim mesmo” (47). Este uso do gerúndio acaba por ser uma decorrência do próprio trabalho interminável de Sísifo, que, também ele, não vê fim para o seu martírio. Mas aquilo que poderia servir na poesia de Daniel Jonas como um elemento heróico, em que o poeta, “solitário, taciturno, mastigante” (45) encontraria um lugar “onde preencher a bazófia lírica que te reclamas/ à janela de ti mesmo” (41), acaba por se transformar num gesto irónico – a lembrar certos elementos presentes em Baudelaire, em particular essa perda da auréola enquanto saltitava na lama. Sísifo já não ascende ao topo de uma montanha, carregando uma pedra, mas ascende “ao topo de um turista/ (…) chorando sobre o seu Evereste /de postal.”, “surpreendido e eternizado no flash/ melancólico do olho adunco forasteiro” (44).Da mesma forma, a presença da história bíblica do sacrifício não consumado de Isaac surge, também ele, como forma de pensar o gesto poético em articulação com o território inóspito da cidade: “Subo a Bica como Moriá/ e passo por este ascensor/ de descida/ bode expiatório inverso (…)” (66). Mas, também aqui, Daniel Jonas acaba por ler de forma irónica a história bíblica, retirando-lhe toda a carga trágica. Abraão, por exemplo, surge retratado da seguinte forma: “O teu pai é forte: todo ele músculos,/ gânglios bíblicos/ espirituais com uma mentalidade de patriarca/ não sei quantos cavalos de potência,/ determinação, responsabilidade, visão,/ uma máquina de pai, militar, adubado a praxis/ uma seta, fé devastadora, implacável, (…)” (64).
É a partir destas duas figuras – Sísifo e o sacrifício de Isaac – que este “filho tardio de Álvaro de Campos”[v] vai interrogar a cidade. No entanto, ao contrário da última produção deste heterónimo de Fernando Pessoa, onde é notória uma tonalidade melancólica, em Canícula esta última é suplantada por uma “sola chaplinesca” (56) que vai trabalhar contra qualquer tendência lírica – tendência entendida, aqui, a partir de um “spleenódromo fosco e furibundo” (48). Apesar da ocorrência da palavra tédio em diversos momentos – a título de exemplo, no maior poema de Canícula surge “um berbequim furando-me o tédio nos ouvidos” (50) e, pouco depois, “pretendo explodir de tédio todo o mundo” (74) – a figura que é construída por Daniel Jonas anda distante, como sublinhou António Guerreiro[vi], do flâneur e da sua flânerie – que, em última análise, denota uma intimidade com a cidade que está além de qualquer estranheza que esta tenha. No entanto, tal como a casa se vai tornando progressivamente inabitável – Daniel Jonas avisa de início que Canícula foi escrito no nº 46 da Rua da Boavista, em Lisboa, numa residência artística em parceria com a Casa Fernando Pessoa e a Fundação José Saramago –, começando por se tratar de uma “coabitação analítica/ de necessidade ou desejo” (9) para passar a uma “clausura/ se vista de fora e habitada por dentro”  (27) transformando-se, por fim, num “tumulto de abandono” (43), também a cidade se vai transformando progressivamente num corpo estranho. Aliás, esta “ecoa” a figura do poeta que vai sendo diferencialmente construída ao longo de Canícula – dando-se por vezes a ler um isomorfismo entre ambas [“Chuvosa tarde, eléctricos me doem” (63), onde se nota uma clara influência de Álvaro de Campos]: Sísifo “subindo por mim mesmo” “em direcção a nada que se veja” (49), Isaac que se vê obrigado a carregar o material para o seu próprio sacrifício, como o poeta que, “arcando com o peso do vento na mochila/ de todos os meus actos e sufrágios/ aqui se confluindo na subida/ aqui na Bica a custo”(46).Se o flâneur anda pela cidade como se cada lugar fosse, de facto, uma parte da sua casa, encetando uma relação especular e isomórfica com ela – o seu lugar, como sublinha Benjamin, é no meio da multidão –, a figura do poeta construída por Daniel Jonas, pelo contrário, encontra-se nas antípodas da flânerie. Recorrendo por diversas vezes à alegoria como forma de caracterização da cidade – veja-se, por exemplo, o que escreve relativamente aos pombos: “Os pombos são os cortesãos aziagados/ de um palácio em ruínas./ Nobres, pestilentos e infectos,/ a minha roda de aduladores,/marqueses insolventes” (17) –, a figura do poeta vai ser aquela de um “nativo-forasteiro subindo a Bica” (Jonas, 2017, p. 44), permitindo-lhe reclamar-se de uma exterioridade face à cidade. Nem nativo nem forasteiro – “E autóctone nem isso, com efeito…/ Apenas um ludâmbulo, enfim…/Que nem de aqui ser calha, calha bem…” (67) –, essa sua condição permite compreender duas características deste “psicodrama interior de alguém que se passeia com uma câmara pela cidade”[vii], psicodrama que, sublinhemos, nada tem de biográfico ou de psicológico. Por um lado, há essa dimensão de uma lógica “sacrifical” que instaura uma retórica da queda, um mal-estar que se deixa ler de forma existencial - “sovado pelo obturador frouxo da existência/ como num matadouro de diapositivos” (27). Por outro, no entanto, e devendo ainda algo a Álvaro de Campos, essa tonalidade que poderia dar lugar a um lamento de matiz melancólico ou àquele olhar pobre de que fala Manuel de Freitas, é, pelo contrário, o momento da transfiguração da linguagem e do real. Vários exemplos poderiam ser dados da presença desses dois momentos em Canícula, a começar pelo crescendo do poema mais extenso que os consegue entrelaçar através de um domínio rítmico da linguagem. Mas gostaríamos de destacar uma passagem de um outro poema: “e há um mal de ser em mim que me faz grande/ e uma zanga zonza de zangão/ como alguém que sobra e se desaba/ do plúmbeo zepelim das asas” (Jonas, 2017, p. 31). É a partir daquilo que sobra e desaba que a cidade se vai transformar num “frémito de brilhos” (21), ao mesmo tempo que, na sua estranheza, vai soar “como sinos derradeiros/ e afinal eram o dezoito ou o vinte e oito ou lá o que é…” (20).


[i] Manuel de Freitas, Pedacinhos de Ossos, Lisboa, Averno, 2012, 21
[ii] Ibidem, p. 13.
[iii] Joana Emídio Marques, «o antiquado que é o mais alto da poesia portuguesa. Entrevista a Daniel Jonas», 4 de Abril de 2017, Jornal O Observador.[iv] Daniel Jonas, , Lisboa, Assírio&Alvim, 2014, p. 9.
[v] Diogo Vaz Pinto, «O Poeta é um tradutor. Entrevista a Daniel Jonas», 22 de Maio de 2016, Jornal Sol.
[vi] Cf. Recensão a Canícula, Público, 7/4/2017.
[vii] Joana Emídio Marques, idem.

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