segunda-feira, dezembro 12, 2016

Biblioteca de bairro


No pequeno bunker do bairro
ali aonde não se atrevem a entrar o bulício do dia
nem os dedos grossos do sol, um ancião lê
com lupa um livrinho, A infinidade passo a passo.
Outro copia à mão a Encyclopaedia Britannica
com a paciência de um monge beneditino,
convencido de que, ao terminar, será herdeiro
do grande bazar do universo: sabedoria, prestígio,
enormes riquezas e, possivelmente, um pouco de sossego.

Os grandes capítulos da História do Mundo
precipitam-se, tropeçando entre as vírgulas
até ao buraco negro do Ponto Final.
As folhas das tragédias de Shakespeare
são tão finas como as paredes de um sanatório:
o jovem protagonista da página treze
consegue ouvir o nome da pessoa
que vai morrer vinte cenas mais à frente.
E dá-se o caso, que surpresa, de ser ele.

Em bicos dos pés, com receio de desbaratar
tanto silêncio pacientemente sedimentado,
percorro as estantes de poesia e benzo-me.
Livros escuros e pesarosos, amontoados como nichos:
Dickinson, Holan, Mandelstam, todos mortos.
Abro um. Alguém o sublinhou com fervor,
riscou-o com raiva, rabiscou junto a um verso
ou uma metáfora só esta palavra: Mentira!

A jovem bibliotecária, morta de aborrecimento,
distrai-se fazendo girar os números do carimbo de datas.
Há tamanha vitalidade no mais inocente dos seus gestos,
é tão longa a linha do amor na palma da sua mão,
que talvez a sua pequena máquina do tempo
possa acidentalmente ressuscitar-nos:
à pálida poesia, a ela mesma e a mim.

- Jesús Jiménez Domínguez
in Contra las cosas redondas, La Bella Varsovia

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