quinta-feira, dezembro 29, 2016


A viagem de que chegava, farto da luz
e subia sempre mais uns andares,
brigão, não contava puto,
às vezes parecia que ia pegar-lhe
mas na amurada comovia-se e
era como se se perdesse por meses.

Procurei-lhe o vento nas camisas,
do bolso descosido uns grãos de
pólen, cinzas estelares
para preparar o cachimbo.
Juntava-lhe os papéis, li-os
à janela de comboios entre países.
Busquei a fidelidade nocturna,
o pacto com o diabo e o resto,
tive mãos em imensos bolsos,
puxei fogo, acendi junto ao rosto
de uma vez só mil cigarros,
fiz por afastar o coração
de uma morte fácil
,
como os versos, revirando tudo,
a matilha caçadora atiçada
por meras sugestões, o vento ferido
de alguma dessas mortes mágicas
.

Mais que roubar, pilhei,
e se bêbado ainda às vezes puxo
da espada. Das minhas mãos preferidas
tirei o lenço, desembrulhei uma cidade
de estranho amanhecer,
vi paisagens mexer-se vivas fazendo jus
às descrições dos grandes romances.
Uma luz de beleza doentia
entre tremores capazes de soterrar países.
Mas nada se alterava, tudo persistia calmo.
O pássaro colhido num estertor
caía e logo embarcavam as formigas,
atravessando a morte como a um rio
quase parado. Só as flores da cerejeira
passam ainda.

A árvore desce de uma altura dulcíssima,
as velhas articulações estalando,
para estender à terra o seu fruto:
sombra segredando em que os seres
vêm esconder os próprios ossos.

Esta flor-cárcere
serviu-me de projecto, jardins iniciando,
uma língua que dispusesse de ambiente
e espaço próprios, e nela as vozes se ouvissem
como passos na terra.

As sombras vão ficando mais frias
quanto mais nos chegávamos,
lá onde tinham enterrado o sol,
com o calcanhar podíamos sentir-lhe
os ossos, a lâmpada subterrânea
entre raízes, os canais floridos.

Abro-lhe os cadernos, vejo os estudos
das espécies. Como os adolescentes
desenhando o que se iam fazer,
ofender a luz com indicações precisas
cheias de raiva e fantasia,
e pelo olho da porta alguém
tão longe dali, espreita-os
soçobrando na obscuridade.
Deitado de costas posso senti-la girar,
à Terra inteira. Uns passos só
neste quarto e chegam os ecos,
dá-se a volta ao mundo.

Dentro das mulheres ouvi-os bater,
companheiros de viagem.
Trocavam tudo com as histórias,
até a armadilha com uma rosa e um cordel,
fazendo os possíveis para que alguma
se apaixonasse por um deles,
bastava para contar aos outros
e engrandecê-lo juntos.

Iam-se a persegui-la como gatos
pelos telhados, a lua rindo-se,
a rua e a noite cada vez mais fracas
enquanto as estrelas lhe desfaziam
as tranças
. Pesam-nos mais que os lábios,
mordidos demasiado fundo,
vozes perto, chegam da memória
lenta, toda ela sem forças.
Como uma vela no escuro
que busca apalpar-lhes o rosto
mas se acaba na repetição
de uns nomes suaves,
já vizinhos do esquecimento.


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