quinta-feira, novembro 10, 2016


Quero dar-vos uma ilustração. Fomos esta terça um bando, a jornalistagem cultural, assim um para aqui, outros a dois, no Teatro Nacional D. Maria II, algumas de volta de uma mesa como se às cavalitas, umas nas outras. Esperávamos o ensaio da peça "As Criadas", atrasado uma hora, e dois actores para outra coisa ensaiavam no hall: um terço café chic, terço sala de espera, bilheteira, aquela coisa toda austera, a antecâmara da A-R-T-E. E as palavras de um 'poeta' que nem declamado conseguia calar fosse quem fosse, teve de vir o funcionário cansado pedir-nos shiu, faz favorzinho, é a ARTE que pede, e esperámos lá fora, o inverno todo connosco e os versitos lá dentro no seu embaciamento. Mas isto é só um parêntesis para que se saiba dos altos serviços que se prestam a um português de aleijadinhos só porque foi escrito ontem (essa maravilha conveniente de se entender como expressão do contemporâneo qualquer bosta enquanto quente)... Fomos ver o ensaio de imprensa, coisa ferocíssima, estalo na tromba, e acabamos, há umas regras dizem-me não devemos bater palmas, estamos todos em trabalho, quanto mais bestial é a coisa mais me sinto o seu coveiro, e vem o encenador, cria-se um casaquinho à sua volta, para que aos gravadores não escape nada, e há a jornalista sénior com aquele ar de enfermeira, abre o estojo, tira a seringa, o pauzinho para ir ao joelho testar os reflexos do homem, e lá vêm em fila as perguntas da praxe, tudo cronometrado, nunca mais de 10 segundos, e o artista que se bata, prende-se-lhe a ponta da língua e toca a enrolar como fita de cassete, lá vem o discurso já montado, basta citar quando nos faltarem ideias. A jornalista tira as suas medidas, para depois ir fazer o fatinho, as amigas, iguais, também, e já com o suficiente para os caracteres, o caixão aberto que vão pôr nas suas montras, dão a vez, e a Joana, a do Observador, criatura, já sabem, com as suas manias, vejam só, esperou pelo fim, deu-lhes a partida, a largada, a fugida, e agora, em vez de seguir o metrónomo das outras, em vez de sacar da fita métrica, fazer uma perguntinha, não, porra, atira um problema, a diaba põe-se mesmo a falar, vejam só, pensa, coloca uma questão cheia de curvas, ainda vai buscar Hegel, e as outras, beatas de toda a decência, a abanarem suas cabeçonhas onde Hegel só entra numa camisa-de-forças, a gaguejar-se todo narcotizado, só faltou que bufassem, "prontos, só faltava agora esta, com a cultura, onde já se viu um jornalista ser mais que um suporte de gravador". A Joana, descontraída, feito comboio, impassível, fez o seu trilho, conversou com o encenador, depois as actrizes juntaram-se, discutiu com elas, foi carne com elas, pôs os joelhos no chão, ajudou na faxina, foi para casa e fez isto: http://observador.pt/2016/11/10/as-criadas-o-horror-tangivel-de-genet-no-d-maria-ii/ Querem ver o que pariu a outra, a patroa, mirem só o ratinho: http://www.dn.pt/artes/interior/nesta-arena-negra-as-criadas-lutam-pela-sobrevivencia-5489346.html Apetecia arranjar confusão lá, quarto acto: putaria total. Tínhamos acabado de assistir ali mesmo a um brutal encantamento índio, os bárbaros tinham finalmente aportado, degolado todo o senado, e assim mesmo, nem palmas nem um pouco mais de alma, só a mesma razão mesquinha de uma gente que na verdade nem existe, mas que do fazer de conta obriga a vida a este podre teatrinho, e vão ver Genet como a novela, e acham que aquelas criadas, à semelhança delas, estavam ali a bater-se por essa coisa ignóbil que é a mera sobrevivência.

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