quarta-feira, agosto 17, 2016

Post do António Gregório


Nelson Rodrigues batendo mais na tecla da entrada anterior:  

      Mas dizia eu que devo muito aos inimigos e muito pouco, ou quase nada, aos admiradores. Os meus admiradores quase me perderam. Quando escrevi Álbum de família, Manuel Bandeira declarou, em entrevista a O Globo, entre outras coisas, que eu era, “de longe, o maior poeta dramático que já apareceu em nossa literatura”. É, como se vê, um elogio de ardente seriedade. E quem o assina é um dos maiores poetas da língua.
      Mas não sei se, hoje, Manuel Bandeira diria o mesmo. Há anos e anos que deixei de merecer o seu louvor. E é maravilhoso que assim seja. Os admiradores, inclusive o poeta, quase provocaram a minha morte artística. Eis a amarga verdade: — durante algum tempo, eu só escrevia para o Bandeira, o Drummond, o Pompeu, o Santa Rosa, o Prudente, o Tristão, o Gilberto Freyre, o Schmidt. Não fazia uma linha sem pensar neles. Eu, a minha obra, o meu sofrimento, a minha visão do amor e da morte. Tudo, tudo passou para um plano secundário ou nulo. Só os admiradores existiam. Só me interessava o elogio; e o elogio era o tóxico, o vício muito doce e muito vil. Pouco a pouco, os que me admiravam se tornaram meus irresistíveis co-autores. E quando percebi o perigo, o aviltamento, comecei a destruir, com feroz humildade, todas as admirações do meu caminho.

      Hoje a toxicidade do elogio pode ser ainda mais feroz — quando já nem se trata de agradar a Manuel Bandeira mas ao frenesim partilhadeiro das redes sociais, que se péla pela frase de ensinamento moral descomplicado, e depois ao mercado dos não-leitores que se querem ter por leitores sem o desafio da leitura, como um adereço, veste-se e pronto, semelhantes aos apreciadores de música clássica que trocam de bom grado a estopada de uma sinfonia de quarenta minutos por um concerto agradável de peças curtas e canções regulares do Rodrigo Leão — não desfazendo; não é para ele o remoque —, porque, uma vez que também mete violinos e músicos trajados a rigor, conta para o mesmo campeonato, e para sofrimento chega o das horas úteis.
      Pessoalmente, encanita-me deveras perceber num texto um autor que julga saber o que eu quero ler — se nem eu sei! Caso esteja calculadamente a tentar agradar-me e o consiga sem que eu o perceba (é uma redundância: para o conseguir eu não posso perceber), saímos do território da fraude e vamos adiantados no do jogo da literatura e está tudo bem. Mas é uma estratégia arriscada.

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