quarta-feira, agosto 17, 2016

Jorge Luis Borges. Os trinta anos da morte e a infância da sua eternidade




Foi a 14 de Junho de 1986 que morreu um dos maiores vultos da literatura mundial, talvez o autor que melhor representa a importância dos livros e da sabedoria na invenção da humanidade


Borges, esse nome impróprio, tornou-se uma senha que carrega um peso muito particular desde há algumas décadas, em que a tradição parece ser desossada pelo fantástico, e o mundo deixa de se reconhecer na sua sombra e reflexo. Dessa inquietante distância cuidou a obra de um dos autores fundamentais do século XX. A própria noção de culto se expandiu, à medida que soube construir narrativas modelares que atraíam leitores intrigando-os, ao mesmo tempo pela forma como os familiarizava com culturas distantes, geográfica e historicamente, mas quase sempre produzindo vislumbres que não encerram uma totalidade. Todo o conhecimento na sua obra só adensa o mistério, sem deixar que o leitor se desinteresse das suas suspeitas.
Mais orgulhoso das suas conquistas enquanto leitor, foi Jorge Luis Borges quem notou que entre “os diversos instrumentos inventados pelo homem, o mais assombroso é o livro; todos os outros são extensões do seu corpo, mas só o livro é uma extensão da imaginação e da memória”. De resto, era sua convicção que ao passo que um escritor está limitado pela suas próprias falhas, e se vê condenado a escrever apenas o que pode, o leitor é mais livre, pois pode ler o que quiser. Numa das entrevistas que deu, e referindo-se a este assunto, lembrou como Schopenhauer fez equivaler a leitura a uma forma de se pensar através da cabeça de outro.
Em grande medida, o que a obra do argentino faz é sempre contar como quem recorda, entre os detalhes que a memória preservou e aqueles que começaram a ser erodidos e reencenados pela imaginação. “Não sabemos se o universo pertence a um género realista ou fantástico, porque se, como crêem os idealistas, tudo não passa de um sonho, então aquilo a que chamamos realidade é essencialmente algo da ordem onírica”, disse o argentino numa série de diálogos na rádio com o poeta e ensaísta argentino Osvaldo Ferrari.
Passaram este mês 30 anos sobre a morte de um gigante da literatura universal cuja influência no século XX ombreia com as de Kafka ou Proust, três décadas que parecem marcar apenas a infância de uma eternidade, no sentido em que, se a sua obra respirou sempre um ar de todos os tempos, com cada passo desvelava instigantes perspectivas, arrastando e animando a grande tradição literária de todo o mundo, e com o tipo de clareza e acutilância que fez de Borges um clássico antes de o ser.
Passadas estas décadas, a capacidade do imenso labirinto que urdiu o escritor nascido em 1899, em Buenos Aires, continua a perder dentro de si e deslumbrar sucessivas gerações de leitores. De resto, e apesar de um magnífico compromisso entre o desafio e a densidade dos seus temas, soube cultivar uma prosa com uma agilidade, graça e até leveza que faz do seu um estilo com afinidades com o jornalístico, deixando pontualmente a economia de palavras por algo sedutoramente rebuscado. O certo é que a sua cultura nunca abdica de uma expressão lúdica. Borges tornou-se em grande medida a epítome do escritor de escritores, alguém que tem influenciado a literatura de todos os que vieram depois, mesmo se o não leram.
Questionado sobre o momento em que se deu conta da sua vocação literária, disse: “Não me lembro de uma época [da minha vida] sem ler ou escrever. Estava sempre a fazer uma ou a outra. Mas o meu pai disse-me que só lia o que me interessava, que nunca li um livro por um sentimento de dever, porque era famoso. Lia só quando me interessava e só escrevia quando tinha necessidade de fazê-lo. Escrevia muito, rasgava muita coisa e não me apressei a publicar, já que publicar não é um capítulo necessário no destino de um escritor.”
A justiça em que o tempo é mestre determina que os escritores, mesmo os muito bons, resvalem, ficando à margem da atenção do mundo quando os seus cadáveres esfriam. Mas se Borges gozou nos últimos anos da sua vida de uma aura de lenda, o tempo não a dissipou, antes pelo contrário. Em muitos sentidos, este nome é a senha para essa mística associada aos livros, portas para um outro mundo que caminha a par deste, mas que em certo sentido o supera. Ou talvez redima. Afinal, não será a erudição e o saber aquilo que permite testemunhar o arrependimento do homem ao longo da História?, dando sinal das suas ambições, remetendo o mundo para um lugar de sombra, como se a realidade mais não fosse que um impossível quebra-cabeças, que leva a um constante fracasso.
Já praticamente cego, Borges foi nomeado director da Biblioteca Nacional argentina, uma ironia que ele venceu, guardando o destino de mais de um milhão de livros, e conferindo-lhe prestígio, com a sua imagem imortalizada na figura de uma sentinela que prossegue as suas rondas através do sonho infinito das bibliotecas. Se não chegou a dominar na sua criação literária a narrativa de grande fôlego, a própria brevidade das suas incursões evidencia a importância do seu papel de guia através de um amplo mapa de referências culturais. É neste aspecto talvez que se encontra a chave para se perceber a influência da sua obra, a forma como nunca se encerrou em si mesma, não procurou criar um mundo próprio, como parece ser o desígnio de tanta literatura, mas decorre tantas vezes do abrir e fechar de portas entre sonhos. Sublinhando passagens, anotando na margem dos livros.
Se tomou balanço nos clássicos de todos os tempos, Borges não deixou de se sintonizar com os avanços técnicos e artísticos do seu tempo. Escreveu sobre cinema, e é evidente como foi inspirado pela técnica de montagem, como em tantos dos seus textos, vai ali buscar um relato, talvez mesmo a uma notícia de jornal, cruza-o com outro fazendo funcionar ligações improváveis, eleva a síntese e a elipse a níveis inauditos. Em grande medida Borges mistura o seu fabuloso instinto topográfico com uma capacidade de juntar peças, criando uma mecânica que organiza em sistema as ideias, as faz funcionar em relações de cadeia em expansão. Como se o trabalho dele fosse definir as leis que permitem que diferentes mundos se integrem num universo.
É revelador o facto de se contarem entre as leituras que por toda a vida mais o fascinaram “As Mil e Uma Noites”, a Bíblia e a “Encyclopædia Britannica”. “Eu acho que para alguém que lê para se entreter e que ao mesmo tempo busca satisfazer um espiríto inquisitivo, a enciclopédia é o mais atrativo dos géneros literários.” Nas sessões de rádio com Ferrari, Borges conta que quando era pequeno acompanhava o pai à Biblioteca Nacional, e, porque era tímido, um traço a que se aferrou ao longo da sua vida, não tinha coragem de requisitar livros, pelo que se servia das obras de referência que estavam à mão de semear dos visitantes. Essa mistura de timidez e de curiosidade levou-o desde cedo para um tipo de exploração que o pôs em contacto com os mais diversos temas e campos do saber, e que, devido à qualidade daquela enciclopédia – que contava com longos ensaios de escritores de génio que não se limitavam a informar mas o faziam sem o sacríficio do prazer da leitura –, se mostrou a grande escola de Borges. A sua obra soube substituir o impulso do leitor para ler sobre um tema que lhe é obscuro. Reconhecendo como o mundo tende a frustrar a nossa curiosidade, ele vai-se desenvencilhando de tudo o que surge como obstáculo no caminho de uma boa história. E não lhe interessa mais entreter o seu leitor do que levá-lo tão longe quanto possível, provocando os seus sentidos ao ponto de desconfiarem de tudo, e colher a flor mais erma dessa admiração que se estende perante um lugar onde nunca se esteve.

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