sexta-feira, julho 01, 2016


A chuva te ensina
a ser invariável sem se repetir.


Lêdo Ivo

Vinte e seis anos aqui, agora,
entre mais contas que faço
e me embalam,
morrendo de idade
e um pouco de tudo,
no quarto em que durmo.

O pequeno sol da lâmpada
fundiu-se de um lado, do outro
as persianas só balbuciando
umas vagas noções de claridade.

Tiro a camisa em voz alta,
deixo os óculos,
lanço um barulho qualquer
aliviando o silêncio
nestes trezentos e sessenta graus
que reajusto
entre fósforo e fósforo.

Chego uns provérbios de cinza
no caderninho,
e, de cabeça baixa, quieto,
sofro com todo o cuidado
enquanto passam pelas minhas mãos
muitas dessas criaturas da idade
dos sonhos,
em busca da sua história.

Fumo de olhos fechados,
somo suspiros mentalmente ou vou
colando restos de melodias.
A chuva cai e eu quase
só penso nisso.
Ouço o mundo e, quando ela pára,
saio

atrás dos pássaros que lhe dão corda:
reticências fabulosas,
que juntam a sua medida
ao canto cordial das distâncias.
Formas indecisas que me levam,
estonteado, baralhando
os nomes do mundo.

Atravesso jardins de manicómios,
escuto a canção intacta
das suas fontes,
olho a mutilada doçura
das estátuas,

essa mão que deixa cair
a última flor,
como um estilhaço,
e uma luz adocicada
que parte crianças em pássaros iguais.

Também não sei ao certo
do que falo, mas sigo-me
de perto
entre ruas, valados,
parques de estacionamento
onde me apanho
girando sem órbita certa,
misturado aos outros,
rebelado, inconsequente, confuso e lírico.


Vadios ensonados
trazem as suas doces personagens pela mão
e distribuem-se, virando o lixo,
farejando a verdadeira alma
do nosso tempo.

Consumidores de épocas,
bocejam uivos magníficos,
falam sozinhos
enquanto bebem restos de chuva
num velho serviço de chá.

Pétalas de rosa afogadas,
a música quebrada
com que o vento junta tudo.

Que estranha lição
de infância.
Gestos antigos, rituais:
composições de pedras e paus,
cruzes de sombra –
esta intimidade mágica que,
a pouco e pouco,
nos devolve o mundo.

Assim e aqui, o pulso dos dias
solta-se e canta,
compassando este ballet
miserável,
a lenta coreografia
que alarga o espaço da fábula.

Os séculos são breves,
a modernidade um delírio inconsequente.
A vida é sempre imediata.

Eis a noite, habílissima,
impondo os seus ritmos indecifráveis
a esse bando adolescente
que corre na ânsia de esgotar a cidade.

Rostos disformes,
sombrios mas belos,
corpos angulosos, geniais.
Anjos que vivem caídos
pelos fundos de cafés e bares
num fascínio incurável.

Há muito tempo
que é assim,
isto,
estas mãos entretidas
sobre pianos mudos
e as expressões de abismo,
leitura suficiente
para quem presta atenção.

Um gosto reservado para sempre
na boca,
as antigas contra-senhas,
o sabor das carícias esboçadas.

A sensação de ser olhado,
e olhar de volta uma mulher
elegante como o fim do mundo.

Alguma lenda que se deitou
com meio país,
(o outro meio não sonha
o que perde).
Sorri largamente,
sussurra sílabas de rezas inarticuladas.
E os deuses somos nós,
se nos restar algum nos bolsos.

Aí, entregue, muito bebido,
a um coração que segue doido
e bate ao calhas,
faço-me todas as velhas promessas:
um copo mais e saio. Mais um
e volto para casa.
Um copo que ainda
não vi tudo.
A vida, já sei, não presta,
mas se é do balanço eu não estou seguro
só que há qualquer coisa que agarra,
e a força, a graça disto
deixa um gajo
comovido como o diabo.

Sem comentários: